Era o dia 18 de outubro de 1979, quando se comemorava o Dia do Médico. Por sugestão do Dr. João Antônio Prata, que terminava naquele dia o seu mandato como presidente da Sociedade de Medicina e Cirurgia de Uberaba (SMCU), e eu assumia a mesma, foram homenageados neste dia os ex-presidentes da SMCU e as famílias dos ex-presidentes falecidos.
A homenagem constou de entrega de um cartão de prata, além das palavras elogiosas àqueles que contribuíram no passado para a defesa da classe médica e da qualidade na prestação dos serviços médicos. Terminada a sessão solene de homenagens, ocorreu um coquetel que constou de refrigerantes e salgados, servidos no saguão. Em certo momento, aproximou-se de mim o Dr. Antônio Sabino, ex-presidente da SMCU e grande clínico, que me disse: “gostaria de agradecer a vocês pela homenagem, pois acreditava que ninguém se lembrasse mais de mim.
A moeda da gratidão circula pouco e, nos meus oitenta anos de vida, raras vezes eu a vi”. A leitura que fiz: o idoso se torna mais sensível aos fatos, pois, além das alterações fisiológicas da senescência (hipoacusia, diminuição da rapidez de resposta e da capacidade de trabalho, entre outras, além da aposentadoria), percebe que na sociedade existem outros valores e outros profissionais mais jovens e mais atuantes que ele. Mas o Dr. Antônio Sabino ficou na minha memória como um grande clínico, pois em 1968, quando eu cursava o quarto ano médico, ele atendeu um paciente ainda jovem no antigo “Ambulatório Maria da Glória”, com história de dor abdominal persistente há vários meses.
Naquela época, a pobreza em exames complementares era enorme, pois se realizavam apenas exames de urina, fezes, hemograma e raios X de tórax. Dr. Antônio suspeitou de “epilepsia forma abdominal” e prescreveu fenobarbital como terapêutica. Semanas após, o paciente retornou, sem qualquer queixa. Foi a vitória da Medicina Hipocrática, que valoriza mais a história clínica e exame físico do que exames complementares, pois esses também não existiam. Tempos depois, citei a frase ao Dr. Sylvio Pontes Prata, professor da Disciplina de Semiologia Médica na então FMTM. Dr. Sylvio pediu que eu a repetisse, pensando que eu fosse o autor. Repeti a frase, disse a data do fato e o autor. Dr. Sylvio tomou nota e fez um quadro com a frase e o colocou fixado na parede da sala da Disciplina.
Um segundo fato, sobre a carência afetiva do idoso se sentir desprestigiado e acreditar que houve ingratidão, ocorreu há cerca de seis anos. Era sábado, 11:45 horas da manhã. Saí apressado do centro cirúrgico, pois necessitava fazer compras e o comércio fecharia às 12:00 horas. Fora do centro cirúrgico, no hall de espera, encontrava-se uma senhora, viúva de um colega anestesista da minha equipe.
Rapidamente a cumprimentei e saí imediatamente. No domingo seguinte, encontrei esta senhora no Uberaba Shopping, que, assim que me viu, rapidamente disse: “você saiu do centro cirúrgico e nem sequer me deu notícias da minha nora, que estava sendo submetida à cesariana”. Respondi que eu estava em outra sala de cirurgia e que eu não sabia do fato, porque era uma urgência e, portanto, não constava do mapa das cirurgias eletivas. Mas a senhora retrucou: “você não me deu importância, mas o anestesista que fez a anestesia me deu informações”.
A leitura que fiz: a senhora, viúva de um colega da minha equipe, pensou: “se o meu esposo estivesse vivo, certamente não me tratariam assim”. Este segundo relato me leva à mesma situação do primeiro: é a sensação do desprestígio do idoso, que se sente esquecido, pois quando jovem nunca vivenciou uma situação igual. Todo idoso algum dia foi chamado de “velho”, no sentido depreciativo. Muitos conceitos mudaram na sociedade, seja pelo “novo normal”, seja pela discussão ainda polêmica sobre o gênero humano.
Porém, é preciso que saibamos compreender que a vida sempre foi a mesma e que nós, humanos, ainda estamos aprendendo a compreendê-la, pois “juventude tem cura” e que aquele que foi ferido é o que mais aprendeu a curar feridas.
Chico Xavier dizia “os ingratos perderam a memória”. É importante ver a moeda da gratidão circulando, principalmente entre os idosos, pois gratidão é uma virtude rara.
Nilson de Camargos Roso
Doutor em Anestesiologia, professor aposentado pela UFTM
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