Anestésico local (AL) não é um fármaco como outro qualquer, pois necessita ser usado na concentração e na velocidade de injeção corretas, assim como não ultrapassar a dosagem máxima em mg/kg de peso do paciente, pois promove depressão das atividades de órgãos importantes, como coração, sistema vascular e cérebro. Excelente monitor é a observação clínica dos sinais e sintomas do pródromo da intoxicação causada: ritmo respiratório e nível de lucidez do paciente, o que permitirá o tratamento precoce.
No ano 2000, levantei o uso do anestésico local no antigo Hospital Escola (HE): 12.190 anestesias com AL, sendo 23,48% por anestesistas (raqui, peridural e bloqueios) e 76,52% por cirurgiões (anestesia local), evidenciando que não é o anestesista quem mais usa o AL.
No primeiro trimestre de 1968, eu cursava o quarto ano de Medicina. No leito 95 da Clínica Médica do antigo HE estava uma jovem de 18 anos, com suspeita de síndrome nefrótica e abscesso no músculo deltoide esquerdo. Acompanhei a paciente até a sala de urgência, onde o abscesso seria drenado por um sextanista que, não havendo ainda Residência Médica, naquela época tinha o status de um médico residente.
O sextanista fez a antissepsia do deltoide com álcool e infiltrou 20 ml de lidocaína a 2% sem adrenalina em torno do abscesso. Em seguida, com o bisturi fez a incisão no abscesso, expondo-o. Com a gaze na ponta de uma pinça de Kocher, penetrou no abscesso e, por repetidas vezes, retirou o pus da ferida. Na sequência, lavou com água oxigenada e, por fim, passou iodo na ferida. Fez o curativo com gazes, prendendo estas à pele com esparadrapo. Presumo que, após a injeção do AL até o curativo, decorreram de 10 a 12 minutos, quando então a jovem começou a respirar mais rápido e com maior amplitude (taquipneia com hiperpneia). Na sequência, fez apneia. Decorreram alguns minutos e a apneia persistiu.
Como hiperventilou anteriormente, não fez cianose. Como a apneia persistiu, eu disse ao sextanista: “parece que ela não está bem”. A resposta dele: “ela é meio HY (histeria)”. Me aproximei da paciente e afastei as pálpebras. Então eu disse: “ela está com midríase bilateral”. Como HY não provoca midríase, o sextanista se desesperou, pois, na sequência, a cianose surgiu.
Não havia material de reanimação na sala. Foi solicitado trazer o cilindro de oxigênio, que veio sem manômetro. Quando este chegou, não havia o fluxômetro, que ao chegar estava sem a mangueira que conduzisse o oxigênio. Naquele tempo, não havia Ambu no HE. Como o sextanista naquela época tinha o status de um médico residente e eu era um recém-saído do terceiro ano, além da minha inibição perante o quadro, também fiquei paralisado, pois o boca a boca salvaria a paciente. O sextanista teve um bloqueio mental, nada foi feito e a jovem foi a óbito. O quadro clínico descrito é totalmente atípico, pois não vi e nem tomei conhecimento pela literatura de outro caso descrito conforme os sinais apresentados como neste relato.
O diretor clínico do HE era o Dr. Hélio Pucci, homem de princípios rígidos, que fez uma advertência com muita intensidade ao sextanista. Este se desesperou e pensou em se suicidar. Foi um corre-corre de colegas para confortá-lo, o que o fez desistir do suicídio, mas foi afastado por 30 dias do HE, quando então retornou.
“O aluno é fruto do meio”, ou seja, é a consequência da orientação feita ou não feita pelo professor. Como ninguém o havia orientado sobre o uso do AL, fica claro que também não cabia ao sextanista desempenhar o procedimento da drenagem do abscesso. A pele possui nervos muito finos que podem ser bloqueados com lidocaína a 0,2%. No caso presente, foi usada a 2%, ou seja, dez vezes mais concentrada.
Ao infiltrar o AL, é necessário treinamento:
1- conhecer as manobras de reanimação, assim como ter às mãos o material de reanimação;
2- seguir protocolos para a injeção de AL.
Nilson de Camargos Roso
Doutor em Anestesiologia; professor aposentado pela UFTM
n.roso@me.com