NILSON ROSO

Balé em cadeiras de rodas

Nilson Roso
Publicado em 17/02/2023 às 17:50
Compartilhar

Em 1994, meu pai, com 87 anos, teve uma ligeira isquemia cerebral, o que o impediu de flexionar os dedos da mão esquerda para tocar seu violino, mas não retirou dele a lucidez e nem a capacidade de se locomover. Porém, com o passar dos meses, teve dificuldade para caminhar, de maneira sempre progressiva. Ele era e sempre foi bem-humorado, jamais se queixando das progressivas limitações e nunca perdendo a oportunidade de comentar situações esdrúxulas das políticas nacionais, fato que todos nós fazemos hoje, diariamente. Porém, pessoalmente, eu estava preocupado com a evolução negativa da sua capacidade de locomoção, sabendo que, mais cedo ou mais tarde, ele iria para a cadeira de rodas. Algum tempo depois, li a notícia sobre a apresentação dos integrantes da Adefu (Associação dos Deficientes Físicos de Uberlândia), que se apresentariam no Ginásio Sérgio Pacheco, localizado no Uberaba Tênis Clube. Acreditei ser interessante convidar meu pai, como candidato a futuro cadeirante, para assistirmos à referida apresentação. Porém, eu apenas o convidei e nada mais eu disse. Na noite da apresentação, nós nos sentamos na arquibancada do ginásio, aguardando os integrantes da Adefu se apresentarem. As primeiras a se apresentarem foram jovens senhoritas, todas abaixo dos trinta anos de idade e algumas abaixo dos vinte anos, em suas cadeiras de rodas. Estavam munidas de bandeiras, que eram movimentadas com habilidade e em perfeita sincronia entre elas, em verdadeira coreografia, de modo que a visão final era a de um balé sobre rodas, onde todas as integrantes, apesar de muito jovens, eram paraplégicas. Percebi que meu pai assistia em silêncio ao espetáculo. Na sequência, houve um jogo de basquete, onde os jogadores estavam em cadeiras de rodas, pois todos, embora muito jovens, como era esperado, eram também paraplégicos. Como todo esporte, houve momentos de jogadas bruscas, que chegaram a projetar os jogadores para fora das cadeiras, com o choque entre elas, fazendo com que eles se erguessem e se recolocassem nas mesmas apenas com o auxílio dos braços, onde se semi-arrastavam.

Terminada a apresentação, sempre observando o semblante de meu pai, constatei que, a todo momento, ele se mostrou alegre, observador, descontraído e com aquele olhar crítico que sempre teve de tudo que observava. Voltamos para casa e, no percurso, elogiamos a beleza do balé e a força física dos jogadores de basquete. Em síntese: acredito que a finalidade de assistirmos àquela apresentação foi por mim alcançada, pois um octagenário que deambulava mal, mas deambulava, estava em condições melhores que a daqueles jovens, tão precocemente já condenados à cadeira de rodas, ou seja, houve uma inversão cronológica, na qual os mais jovens estavam em piores situações que o mais idoso. Enfim, meu desejo era preparar a mente de meu pai para um futuro, onde a única certeza era ser aguardado pela cadeira de rodas, fato que realmente ocorreu.
Post scriptum: um arguto colega de turma, Djalma Abrão, após ler este texto, disse-me o oposto: “o pai soube preparar o filho”.

 Nilson de Camargos Roso

Doutor em Anestesiologia, professor aposentado pela UFTM

n.roso@me.com
 

Assuntos Relacionados
Compartilhar
Logotipo JM OnlineLogotipo JM Online

Nossos Apps

Redes Sociais

Razão Social

Rio Grande Artes Gráficas Ltda

CNPJ: 17.771.076/0001-83

Logotipo JM Magazine
Logotipo JM Online
Logotipo JM Online
Logotipo JM Rádio
Logotipo Editoria & Gráfica Vitória
JM Online© Copyright 2024Todos os direitos reservados.
Distribuído por
Publicado no
Desenvolvido por