Era 1979, segunda-feira, dia de meu plantão no antigo Hospital Escola. As cirurgias estavam ocorrendo em três salas. Como eu era o único anestesiologista, estava sendo auxiliado por médicos residentes em cirurgia geral, que faziam um estágio rotatório. Na sala “A” houve uma cirurgia de colectomia para correção de megacolon chagásico. Sempre orientei os estagiários sobre a importância do final de uma anestesia geral, onde o paciente está curarizado e em coma farmacológico, sob a ação de hipnóticos. Enfim, somente podemos retirar o tubo traqueal quando o paciente estiver com reflexos protetores presentes e adequada respiração. Estando eu em outra sala de cirurgia, o residente que estava na sala “A”, não seguindo minhas orientações e sem a minha presença, extubou o paciente, que certamente hipoventilou e, em consequência, desenvolveu apneia, que não sendo diagnosticada a tempo, foi seguida de parada cardíaca. Fui imediatamente solicitado e, após a reintubação traqueal, foram iniciadas as manobras de massagem cardíaca, ventilação e administração de drogas. Porém, as condutas tomadas se mostraram sem resultados. Assim, solicitamos que trouxessem o desfibrilador cardíaco. Um outro residente em cirurgia se dispôs a trazê-lo. Minutos após, o referido residente retornou trazendo o desfibrilador, o que permitiu a reversão do quadro. Porém, este residente relatou que:
1) procurou a enfermeira chefe do hospital, que respondeu que o desfibrilador estava trancado na sala de terapia intensiva, ainda não inaugurada, e que “para ser liberado precisava da autorização do cardiologista responsável pela UTI”, que não estava no hospital;
2) na sequência, o residente arrebentou a porta da UTI, assim como arrebentou a porta do armário onde estava o desfibrilador, trazendo este até a sala “A”.
Passadas algumas semanas, este residente me procurou, mostrando um ofício dirigido a ele pelo setor jurídico da FMTM, onde constava a abertura de sindicância para apurar a responsabilidade pela “destruição dos bens da União”. Munido do ofício recebido, enviei outro de cunho pessoal, elaborado por mim e dirigido ao responsável pelo ofício enviado ao médico residente, na seguinte sequência:
1) citei o fato ocorrido, o dia, a hora e o local do fato, as iniciais do paciente e o número do prontuário do mesmo;
2) a argumentação que utilizei: “o referido médico residente, por minha solicitação, trouxe o desfibrilador, mas, sem minha orientação, arrebentou a porta e o armário da UTI. Porém, embora eu não o orientasse a cometer tais atos, afirmo que eu teria agido exatamente como ele agiu, pois A VIDA HUMANA É MAIS IMPORTANTE QUE OS BENS DA UNIÃO”. Acredito que este meu ofício encerrou a sindicância da apuração pela destruição dos bens da União. O referido médico residente em cirurgia está trabalhando em Jataí, GO, onde, além da competência profissional, é também reconhecido pelas suas qualidades humanísticas.
Nilson de Camargos Roso
Doutor em Anestesiologia, professor aposentado pela UFTM
n.roso@me.com