NILSON DE CAMARGOS ROSO

O que é mais importante: a vida humana ou a obediência ao protocolo?

Nilson de Camargos Roso
Publicado em 13/01/2023 às 19:07
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O título do texto abordado é provocativo e polêmico, mas, infelizmente, verdadeiro, pois fatos graves ocorridos no Hospital de Clínicas (HC) da UFTM, que podem se repetir, merecem análise. Dois fatos ocorridos há mais de uma década:

a Dra. L.B., estando no segundo andar do HC, setor de pediatria, ouviu barulhos fora do hospital. Abriu o vitrô e viu pessoas fazendo massagem cardíaca em um senhor, do lado de fora das grades situadas na frente do Pronto Socorro (PS), que estava a 30 metros de distância. O paciente foi a óbito. Naquela época, os pacientes, para entrarem no PS, já obedeciam ao protocolo que determinava “os pacientes somente serem aceitos se chegassem de ambulância”, o que não ocorrera com este;
família levou paciente ao HC no próprio automóvel, após sofrer acidente no trânsito. Devido ao protocolo, não foi aceito no PS e precisou ser levado à uma UPA (Unidade de Pronto Atendimento), mas, quando retornou por ambulância, já havia falecido.

Cito casos mais recentes:

Caso 1 - o cardiologista Dr. Marcos Antônio Lopes estava atendendo no Ambulatório Maria da Glória (AMG) uma paciente que, na presença dele, teve uma arritmia grave. Dr. Marcos a colocou em uma cadeira de rodas e a levou ao PS, distante cerca de 80 metros, onde o quadro foi tratado. Dias após, Dr. Marcos recebeu uma carta de advertência da administração do HC, pois “não seguiu o protocolo de encaminhamento à UPA”;

Caso 2 - relatado pelo cirurgião de cabeça e pescoço Marco Aurélio de Oliveira Marinho, que atendeu um paciente com importante abscesso dentário, que se manifestou com projeção pelo pescoço, necessitando ser drenado o mais rápido possível. Encaminhou o paciente ao PS, mas foi advertido por não obedecer ao protocolo. Encaminhou o paciente à UPA, mas este foi para casa e o próprio paciente, com o auxílio de uma agulha de crochê, drenou o abscesso;

Caso 3 - no dia 23 de novembro de 2021, A.M.C., R.G. 1791458, estava no AMG, aguardando para ser submetido à colonoscopia, quando passou mal, a 80 metros de distância do PS. O protocolo do HC determina que os pacientes ambulatoriais devem ser encaminhados à UPA, através de ambulância, mas quando esta chegou, o paciente já havia falecido. Este fato foi inquirido à Superintendência do HC por um jornalista, que obteve como resposta “estamos seguindo as normas pactuadas com o município”. Nos primeiros dias de dezembro de 2021, os professores da UFTM Meire Ataíde Soares, Murilo Antônio Rocha e Molina foram ao Ministério Público Federal (MPF), levando as condições negativas do Programa de Residência Médica da UFTM. Eu os acompanhei e citei o fato, o nome e RG do paciente falecido no AMG. O responsável pelo MPF que me ouviu nada disse, não se pronunciando, embora a UFTM seja federal e o paciente seja do SUS. Em 12 de abril de 2022, na presença de cerca de 20 professores da UFTM, narrei este mesmo fato ao general Antônio, vice-presidente da Ebserh (Empresa Brasileira de Serviços Hospitalares), onde entreguei o nome e o RG do paciente à sua assessoria jurídica para a apuração, mas, até hoje, sem resposta. Disse ao general que “casos como esse, certamente, teriam destaque no programa “Fantástico”, de domingo à noite”. O general nada respondeu;

Caso 4 - nos primeiros dias de junho de 2022, o servidor federal e técnico de enfermagem J.C., após o seu plantão, ainda dentro do HC, sentiu-se mal. Devido ao protocolo, foi encaminhado à UPA e desta para o Hospital Regional, que, após tomografia, selou o diagnóstico de aneurisma de artéria ilíaca. Retornou ao HC, onde foi submetido a cirurgia, tendo falecido no pós-operatório;

Casos 5 - urológicos:

1) paciente atendido no AMG com cálculo em ureter e sinais indicativos de evolução para septicemia. O protocolo foi desobedecido e o paciente internado;

2) paciente atendido no AMG com clínica de torção de testículo. Encaminhado para ultrassom, o diagnóstico foi confirmado. O protocolo exigia enviar o paciente para a UPA, o que não ocorreu, sendo operado.

Tenho relatos de cardiologista e de neurologista, que, tendo pacientes graves, conseguiram interná-los no HC, valendo-se de amizades com colaboradores.

DISCUSSÃO DOS CASOS:

Caso 1 - se o Dr. Marcos tivesse obedecido ao protocolo, a paciente teria falecido;

Caso 2 - um abscesso pode evoluir para septicemia. Se houvesse o óbito, o Dr. Marco Aurélio seria responsabilizado, pois não agiu no tempo previsto, e “o tempo é ouro”. Há cerca de 3 anos, faleceu uma biomédica, irmã de um colega médico, por septicemia, causada por abscesso dentário;

Caso 3 - Se A.M.C. tivesse sido encaminhado ao PS (estava a 80 metros), poderia ter sido salvo. Se fosse a Superintendente do HC ou o Reitor da UFTM que passassem mal dentro do AMG, certamente teriam sido levados ao PS, o que comprova que ambos possuem vida de primeira classe, enquanto os pacientes do SUS são de segunda classe. Se um médico residente se sentisse mal dentro do HC, também seria encaminhado à UPA?;

Caso 4 - o HC é o único hospital público credenciado para atendimentos de alta complexidade, o que nos permite pensar que o técnico de enfermagem, se atendido dentro do seu local de trabalho, se submetido a um exame de ultrassom abdominal, que é um exame indolor, inócuo, barato e com resposta em minutos, teria sido operado com mais precocidade, o que aumentaria sua possibilidade de sobreviver;

Casos 5 - urológicos, atendidos dentro do HC:

1) é do conhecimento da classe médica que um cochilo (demora no atendimento) em pacientes com cálculos ureterais leva ao óbito por septicemia;

2) quando há torção de testículo e a cirurgia corretora somente ocorrer após 6 horas do início do quadro, há possibilidade de necrose e perda do testículo.

O maior compromisso do médico é oferecer segurança ao paciente. “O ato médico é pessoal e intransferível”, o que o torna subordinado às normas do Código de Ética Médica e ao Conselho Regional de Medicina (CRM), independentemente de protocolos. Porém, no momento em que o médico obedece a este protocolo, ele deixa de ser médico, pois aceitou colocar a vida do paciente em risco. Solução que proponho: um paciente que procurar o PS será examinado pelos plantonistas e, se não houver riscos, será encaminhado à UPA, mas “cada caso é um caso”. Um fato isolado não tem valor, mas a repetição de fatos graves, que podem e devem ser evitados, traz preocupação. Pergunto: se a vida humana é uma “matéria-prima” que não permite reposição, até quando a existência desse protocolo deve existir? Dr. Adib Jatene dizia que “o problema do pobre não é ser pobre, mas sim ter apenas amigos pobres”. Todos aqueles que têm plano de saúde privado talvez não entendam este texto, pois não necessitam do SUS. Martin Luther King dizia: “a mim não interessa as leis (normas), mas sim os seus intérpretes”. A moderna administração de um hospital público fala em “governança corporativa, capacitação, reciclagem, consultorias, compliance, reengenharia, protocolos, Tecnologia da Informação, Lei Geral de Processamento de Dados, etc, etc”. Mas onde estão a prudência, o bom senso, o discernimento e a expertise, para mudarem este fatídico protocolo que impede de dar ao cidadão o mais elementar direito: manter e garantir a sua própria vida?

Conclamo as autoridades da saúde de Uberaba, assim como os representantes dos Ministérios Públicos Federal e Estadual, da Polícia Federal, dos Poderes Judiciários Federal e Estadual, da Sociedade Civil Organizada (SCO), assim como os advogados (OAB: Ordem dos Advogados do Brasil), os médicos (SMCU: Sociedade de Medicina e Cirurgia de Uberaba) a se manifestarem sobre este sombrio protocolo, que pode ser rotulado como crime culposo por negligência ou como forma exacerbada de desídia (preguiça, má vontade, indolência, desejo de não trabalho). Este texto será também encaminhado ao Conselho Regional de Medicina de MG, pois o assunto abordado é de segurança pública.


Nilson de Camargos Roso

Médico, CRMMG 6252, Doutor em Anestesiologia, professor aposentado pela UFTM 

n.roso@me.com

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