Era o final da década de 1990. Como transcorreram mais de 20 anos, atrevo-me a narrar o fato que consiste em uma jovem que deu à luz no Hospital Escola (HE) da então Faculdade de Medicina do Triângulo Mineiro (FMTM), hoje Hospital de Clínicas (HC) da UFTM, e recebeu a alta hospitalar sem a filha. Repito, a filha não acompanhou a mãe para casa. O fato prodrômico a esta narrativa, em síntese:
1) havia no Alto da Abadia um conjunto de várias casas, em terreno de mais de 2.000 metros quadrados, cercadas por muro de cerca de 3 metros de altura; 2) nestas casas era prestada assistência psiquiátrica a algumas dezenas de pessoas esquizofrênicas, onde inclusive havia um irmão de um colega médico que esfaqueou o abdome do próprio pai; 3) a instituição era mantida pelas aposentadorias dos esquizofrênicos internados; 4) a Prefeitura Municipal de Uberaba, através da Secretaria de Saúde, era a principal fornecedora do medicamento de uso contínuo (haloperidol).
Durante o mês de agosto, sempre houve a festa da Nossa Senhora da Abadia. Uma jovem esquizofrênica, de 18 anos de idade, certa noite, conseguiu fugir do local de internação neste período da festa, sendo resgatada no dia seguinte. Nove meses após, foi internada no HE da FMTM para o nascimento da criança. Três dias após o parto, a mãe recebeu alta hospitalar, sem a filha recém-nascida. Esse local de internação de esquizofrênicos recebia a orientação gratuita de uma advogada, adepta e de muita convicção à religião espírita. Daí sua atitude altruísta de uma boa cristã. Esta advogada me procurou, dando-me o nome da jovem esquizofrênica, e pediu-me que averiguasse no HE o que havia acontecido.
Como eu era professor na FMTM, com facilidade, fui ao Serviço de Assistência Social e obtive as informações desejadas, onde me foi relatado que a paciente recebera o diagnóstico de “grávida portadora de esquizofrenia”. Com a participação de integrantes do Serviço Social e de Psicologia, a criança foi encaminhada para a adoção, inclusive com a anuência de Juiz responsável pela Vara. Esta adoção certamente foi compartilhada com outras pessoas, que observaram a minha investigação.
Dias após, recebi o telefonema de pessoa da área do jornalismo, que me inquiriu sobre “qual seu interesse em deixar uma criança com uma esquizofrênica e não permitir que seja criada por uma família bem estruturada, oferecendo a esta criança tudo o que a mãe não pode oferecer”. Respondi-lhe que havia uma advogada que respondia pela instituição e que tudo poderia ter transcorrido sem traumas, dentro da legalidade das duas partes: a advogada que representava a mãe e o casal que pretendia fazer a adoção. Disse mais: “você é da área do jornalismo. O que você acha se o seu jornal estampasse a manchete “MÃE DÁ À LUZ E VAI PARA A CASA SEM A FILHA?” Nosso diálogo terminou ali.
Comuniquei o ocorrido à advogada, que imediatamente entrou com o pedido de “aposentadoria por esquizofrenia” para a jovem mãe. O curioso foi que, embora houvesse o atestado do médico psiquiatra, o então Instituto Nacional da Previdência Social (INPS) negou a aposentadoria. A advogada se dirigiu ao Juiz que determinou a adoção e colocou o mesmo frente ao seguinte dilema: “se a mãe é esquizofrênica, entendo o porquê da doação e da consequente aposentadoria, mas se não é esquizofrênica, ela tem direito à filha”. O Juiz acionou o INPS e, dentro de uma semana, a aposentadoria foi concedida. Deve esta ter sido uma das aposentadorias mais rapidamente concedidas no Brasil. Tive informações posteriores de que a criança e os pais adotivos eram felizes, dentro de um clima de uma desejada normalidade. Entendo que uma análise delicada da ÉTICA UTILITARISTA, se não for completa, pelo menos explica e ameniza a maneira pela qual ocorreu a adoção, pois um mal menor (a maneira como ocorreu a doação, sem o devido processo legal) permitiu que um bem maior fosse alcançado, onde o desejo foi que uma criança bem-criada reforçasse a felicidade da família que a recebeu.
Post scriptum: nomes de pessoas e do local foram propositalmente não revelados, não apenas por decisão pessoal, mas também devido à vigente Lei Geral de Processamento de Dados.
Nilson de Camargos Roso
Doutor em Anestesiologia, professor aposentado pela UFTM
n.roso@me.com