Peripécia é o momento de uma narrativa de maneira inesperada e modo de agir de um personagem. No caso, próprio de um jovem de 28 anos, que era a minha idade em 1974, quando fui solicitado por um colega neurocirurgião de Uberaba que fora atender emergência em Araxá.
Uma importante senhora da sociedade, vítima de acidente automobilístico e operada por ele à noite, devido ao hematoma craniano, com fratura de dentes por intubação traqueal difícil, além de importante pneumotórax à esquerda e que precisava ser drenado e ser colocada em ventilação mecânica, devido ao edema cerebral. Fui à Araxá. No quarto da paciente, contrariando o protocolo que determina estes procedimentos serem feitos no centro cirúrgico (vejam a sequência de imbecilidades cometidas por um jovem médico), drenei o hemotórax em selo d’água, usando a maior sonda de Foley disponível.
Na sequência, sedei a paciente, puncionei a membrana intercricotiroidea, administrei anestésico local intratraqueal, seguido da intubação nasotraqueal às cegas, tal como aprendi na minha Residência, usando o tubo 26 (escala Charrier, francesa, na época), que corresponde ao tubo 06 de hoje (escala americana). Instalei a ventilação mecânica com o Bird Mark 7. Durante 3 dias, eu ia e voltava de Araxá, trazendo sangue para dosagem de eletrólitos e gasometria arterial.
Disse, então, à família que eu não tinha condições de permanecer naquela situação por tempo indeterminado e que sugeria a transferência da paciente para um centro maior. A família optou por levar a paciente para importante hospital de São Paulo, capital. No dia seguinte, chegou um colega paulistano, intensivista, e, ao examinar a paciente, que embora hemiplégica, estava lúcida e com gasometria e eletrólitos normais, disse à família: “não sei por que vocês me chamaram, pois está tudo bem”. Houve, então, olhares familiares nada amistosos sobre mim, pois eu alertara sobre a labilidade do paciente neurológico e em momento algum eu não disse o que a família desejava ouvir: “ela está bem e vai viver”.
O colega passou no quarto ao lado e disse ao esposo da paciente, que também sofrera o acidente: “amanhã, neste horário, vamos tirar o tubo e ela pessoalmente falará por telefone com o senhor”. Colocamos a paciente na ambulância, sempre sob ventilação artificial, e trouxemos a mesma até o aeroporto de Uberaba, onde tomou o avião junto com o colega. No dia seguinte, em São Paulo, na hora em que o colega disse que a paciente telefonaria ao esposo, a mesma foi a óbito. Naquela época, eu havia dito à família da paciente que “paciente neurológico tem evolução imprevisível e se parece com o jogador Garrincha, ou seja, quando pensamos que ele sai pela direita, ele sai pela esquerda, ou vice-versa”. Enfim, é necessário muito cuidado com prognósticos sobre pacientes com traumas neurológicos.
Embora ainda jovem e cometendo peripécias, cujo “modus faciendi” da minha atuação possa ser criticado, mesmo trabalhando em condições inadequadas, entreguei uma paciente, hemiplégica pelo hematoma cerebral, completamente lúcida, mas que teve um infeliz desenlace, mesmo estando em hospital de alta referência e com maiores e melhores condições de tratamento para quem se recuperava de um trauma.
Nilson de Camargos Roso
Doutor em Anestesiologia, professor aposentado pela UFTM
n.roso@me.com