NILSON ROSO

Peripécias de um jovem médico (parte II)

Nilson Roso
Publicado em 20/04/2023 às 18:59
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Após terminar especialização em Anestesiologia no Hospital Pedro Ernesto, da então Universidade Estadual da Guanabara, em 1971, nos meses de janeiro e fevereiro de 1972 frequentei o CTI do Iaseg (Hospital do Instituto de Aposentadoria dos Servidores do Estado da Guanabara), cujos chefes eram Renato Corrêa Ribeiro e Nathan Treiger. Foi lá que vi as primeiras punções de veia jugular interna, via pré-esternocleidomastoidea, pelo colega Marildo Gouvea. Na década de 1980, surgiu a via trans-esternocleidomastoidea, e em 1990, a retroesternocleidomastoidea. Os primeiros CTIs foram criados no Rio de Janeiro, no final da década de 1960, e não havia qualquer rotina ou protocolo para atendimento ao paciente crítico em Uberaba. Daí, fui me inteirar das rotinas de um CTI.

Em 1974, o professor titular de Ginecologia e Obstetrícia da FMTM, Dr. Fausto da Cunha Oliveira, solicitou que eu fosse à cidade do Prata para socorrer um jovem que sofrera acidente de automóvel, onde o rapaz, conhecido por Marquinho, funcionário da empresa 3M, próximo àquela cidade, dirigindo um Fusca, foi abalroado por um caminhão com carga viva de bois que iam para o abate, de propriedade do Sr. Ovídio de Brito. Literalmente, o caminhão passou por cima do Fusca. Em torno das 20 horas, juntamente com o falecido e querido colega Aulo de Oliveira Sousa, então sextanista de Medicina, chegamos ao Hospital daquela cidade. O Marquinho estava no leito do hospital, pálido, arfante e dispneico e, à minha chegada, disse: “doutor, com a sua chegada eu sei que não vou morrer”. A ausculta bilateral do tórax era compatível com pneumotórax bilateral. Procedi:

1- dissecção da veia axilar esquerda, infusão “soberana” de soluções de Ringer Lactato e Soro Fisiológico, pois a pressão venosa central era próxima de zero;

2- drenagem bilateral de ambos os hemitórax em selo d’água;
3- sedação e curarização, intubação orotraqueal e ventilação artificial em BIRD Mark 7;

4- como havia fratura de múltiplas costelas em ambos os hemitórax, procedi à traqueostomia, usando um tubo traqueal para isso;
5- Aulo foi a Monte Alegre, cidade próxima, para trazer dois frascos de sangue, que foram infundidos.

Os parâmetros das pressões arterial e venosa se normalizaram.
Às 8 horas do dia seguinte, chegou ao aeroporto do Prata um avião teco-teco, cujo piloto era o Nick Cárter Alves Furtado (irmão do Sherlock Holmes Alves Furtado, ambos irmãos do Danilo Alves Furtado, meu colega de turma). Ao retirar o Marquinho da cama hospitalar e passá-lo para a maca, o mesmo fez parada cardíaca. Após reanimação, coloquei cinco ampolas de Isoproterenol no soro que corria, juntamente com relaxante muscular e diazepam e nos dirigimos ao aeroporto. O avião possuía quatro bancos, com pouco espaço entre eles. Sentei o Marquinho no banco esquerdo traseiro e eu, à sua direita. O Aulo sentou no banco dianteiro direito, segurando o soro infundido, e o piloto, no dianteiro esquerdo. O Marquinho veio com a cabeça apoiada no meu ombro esquerdo. Com a mão direita eu acionava o Ambu, com ar ambiente apenas, e com a minha mão esquerda eu pegava o pulso radial da mão direita. Chegamos ao Hospital São Domingos, em Uberaba. O raio X de tórax revelou: ruptura total do hemidiafragma esquerdo, com presença de alças intestinais neste hemitórax. No pulmão direito: maciça hemorragia parenquimatosa. Marquinho foi operado pelos colegas Walter Maluf e Gilberto de Oliveira (recém-formado e que se afogou tempos depois no Rio Grande) e fizeram a rafia do diafragma. Marquinho ficou 20 dias sob ventilação mecânica na atual Recuperação Pós-Anestésica, com cuidados improvisados de uma UTI, devido às fraturas de múltiplas costelas em ambos hemitórax. Permaneceu mais dez dias ainda no Hospital, com alta hospitalar, deambulando.

O porquê de “peripécias de um jovem médico”:

1- capacidade de adaptação às condições inadequadas existentes;
2- peripécias, hoje inaceitáveis, pois há protocolos de atendimento:
2.a) técnicas invasivas, como dissecção venosa, drenagem torácica, intubação traqueal, traqueostomia, ventilação mecânica, necessitam de infraestrutura, como um centro cirúrgico ou, pelo menos, um CTI equipado, condições inexistentes no único hospital de atendimento, na época;
2.b) verdadeira condição heroica de transporte em avião de pequeno porte, com paciente sentado e ventilado manualmente, sem oxigênio adicional e sem monitorização, condições proscritas hoje no transporte de um paciente de alto risco.


Nilson de Camargos Roso

Doutor em Anestesiologia, professor aposentado pela UFTM 

n.roso@me.com

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