ARTICULISTAS

Seria eu um Dom Quixote?

Nilson de Camargos Roso
Publicado em 04/04/2025 às 18:30
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Miguel de Cervantes escreveu o livro “Dom Quixote” entre 1605 e 1615. No capítulo VIII do livro há um episódio em que Dom Quixote, ao chegar a uma planície, confunde cerca de trinta moinhos de vento com gigantes, decidindo enfrentá-los. Sancho, seu escudeiro, ainda tenta alertá-lo da ilusão, mas Quixote insiste e parte para o ataque a um dos moinhos, sendo derrubado juntamente com seu cavalo Rocinante por uma das pás.

Daí surgiu o adjetivo “quixotesco”, que, segundo o “Dicionário Houaiss da Língua Portuguesa”, seu principal sentido é o de alguém “generosamente impulsivo, sonhador, romântico, nobre, mas um pouco desligado da realidade”. Para Caldas Aulete, trata-se de algo ou alguém “ousado, irrealista, utópico”.

Era o dia 25 de março de 1984, domingo, quando o colega anestesista Aulo de Oliveira Sousa, após ser baleado e torturado em sua residência, faleceu, vítima de latrocínio. Dias após, escrevi em jornal local o texto “Ao Dr. Zucato, aos outros… e também a mim”, onde critiquei as autoridades responsáveis pela segurança pública pela insegurança acontecida, critiquei a sociedade que não se manifestava, mas critiquei também a mim, onde somente me manifestei porque Aulo era meu amigo, ou seja, se ele fosse um desconhecido, eu também não teria me manifestado. Era um caso de “crime do silêncio”, onde cada cidadão se manifesta somente quando tem interesse pessoal.
Após a publicação do texto, um colega médico já idoso me rotulou de “Dom Quixote”, pois eu estaria lutando por algo impossível, que é a segurança pública desejável.

Em 1998, eu era um simples docente na FMTM, mas procurei junto ao MEC, através de contato telefônico, confirmar a liberação de vaga para a contratação de um amigo professor, que inclusive já havia prestado e sido aprovado em concurso público para professor titular, há mais de um ano. O então diretor da FMTM não desejava a contratação do referido professor, mas tomou conhecimento da minha conduta junto ao MEC. Em consequência, como réplica, a Direção da FMTM promoveu onze ações judiciais em meu desfavor, que foram todas extintas na Justiça, a meu favor.

Foi um período difícil para mim, pois, ao tentar ajudar um amigo, fui punido com essas ações, o que me trouxe gasto financeiro e estresse e, inclusive, fui intimado a depor na Polícia Federal. Neste caso, pessoalmente, eu me senti um Dom Quixote, pois me envolvi em uma questão que não era minha, a não ser a amizade com meu colega injustiçado.

Em 13.01.2023, escrevi neste jornal o texto “O que é mais importante: a vida humana ou a obediência ao protocolo?”, onde denunciei fatos que podem ser rotulados de negligência ou de desídia (preguiça, má vontade, indolência, desejo de não trabalho) do serviço público, pois vários pacientes, todos do SUS, morreram ou na porta do Pronto Socorro (PS) da UFTM ou próximo (Ambulatório Maria da Glória), pois um protocolo estabelecia que somente poderiam ser admitidos no PS se chegassem de ambulância oriunda da UPA.

Nesta reportagem, conclamamos as autoridades de diversas áreas a se manifestarem sobre a negligência que levaram várias pessoas ao óbito, fato que não ocorreu. Em fevereiro de 2023, encaminhei a referida reportagem ao CRM-MG, que em janeiro de 2025 abriu um processo ético-profissional para que eu apresentasse as provas. Porém, as provas poderiam ser obtidas somente através dos depoimentos dos referidos profissionais de saúde que presenciaram os fatos. Verificadas as dificuldades de obter a ajuda desses profissionais, respondi ao CRM que há cerca de dois anos, com a nova administração da UFTM, mais nenhum caso de óbitos causados por omissão ou negligência ocorreu e que, se assim entendesse, a denúncia poderia ser arquivada. Enfim, os colegas médicos que me informaram e me motivaram a impedir que ocorressem novos óbitos inaceitáveis não me forneceram as devidas provas para responder ao CRM. Também, neste caso, eu me senti um Dom Quixote, onde os próprios colegas que me municiaram se comportaram como as pás dos moinhos, pois me derrubaram. Como apoio encontrei apenas o eco da minha própria voz.

Os brasileiros desejam um Brasil melhor, mas não desejam se expor por serem omissos ou isentões, onde “todos querem exercer influências, sem assumir responsabilidades” (John Kennedy).

Todo cidadão de conduta razoável obedece a princípios e valores que devem ser aprendidos em família e praticados na sociedade. É salutar combater erros, e não perder a capacidade de se indignar com a persistência desses erros, pois, perder essa capacidade é desistir de viver.

Quando agimos seguindo esses princípios e valores, recebemos um tributo, mas transgredir os mesmos nos obriga a pagarmos o tributo, seja através de críticas ou de rejeição pela sociedade. Estamos frente a uma questão conceitual: se defendemos os bons princípios, não podemos ser rotulados de Dom Quixote.

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