Em 1980, a Sociedade de Medicina e Cirurgia de Uberaba (SMCU) organizou o simpósio acima referido, patrocinado pela Associação Médica de Minas Gerais, com quatro debatedores médicos:
1) Professor Tolstoi Junqueira de Morais, psiquiatra, representando a FMTM;
2) Dr. Evaldo Alves D’Assumpção, cirurgião plástico, representando o Conselho Regional de Medicina de MG;
3) Dois professores titulares de Ginecologia e Obstetrícia, um da Universidade Federal de Minas Gerais e outro da Universidade Federal de Juiz de Fora (UFJF), cujos nomes não me recordo. Estavam presentes no auditório da SMCU cerca de 50 pessoas e, entre estas, estavam freiras e padres católicos. Após os debatedores discorrerem sobre diferença entre planejamento familiar e controle de natalidade, o professor titular da UFJF fez uma abordagem fundamental. Explicou que entre os diversos métodos anticoncepcionais se encontrava o “Método Billings”, onde a própria mulher, pelo tato, pesquisa a consistência do líquido vaginal (muco cervical) e, dependendo da consistência do mesmo, ela pode avaliar se o período fértil se aproxima. O professor, então, disse textualmente: “falar em “Método Billings” para uma plateia tão intelectualmente seleta, acomodada sob ar condicionado, é muito fácil. Difícil é falar para uma população carente na periferia de Juiz de Fora, em ruas sem calçamento, sem infraestrutura, com esgoto correndo a céu aberto. Ou seja, esta população dificilmente utilizará este método ou, se utilizar, será com péssimos resultados práticos”. Notei que muitos admiraram e gostaram da colocação franca do professor, que contrariava os defensores do “Método Billings”, que diziam ser de fácil aplicação prática, mas com bons resultados em população com melhor condição social. Na época eu era o Presidente da SMCU e aquele depoimento corajoso me estimulou a narrar uma experiência pessoal, pois desejava contribuir para a discussão de um assunto tão complexo como o planejamento familiar. Fiz o depoimento. “Era o ano de 1975 e estava trabalhando no plantão noturno no antigo Hospital Escola. O obstetra ia realizar uma cesariana em paciente com apresentação fetal atípica, que iria completar o seu décimo quarto filho, e me abordou, dizendo que conhecia a extrema pobreza da paciente e que desejava fazer a ligadura de trompas, perguntando-me se eu concordava, pois a paciente não tinha condições de discernir sobre o assunto. Respondi que concordava. O obstetra me disse, porém, que havia outro problema, pois era uma irmã (freira) que estaria atuando como circulante na sala de cirurgia. Respondi que eu iria solicitar, durante a cirurgia, todo o material que não estivesse disponível na sala, o que a afastaria por vários momentos e daria o tempo suficiente para o obstetra fazer a ligadura das trompas”. Argumentei, neste depoimento aos simposistas, que cometi, juntamente com o obstetra, uma infração ética, pois o correto seria obter a autorização por escrito do casal, fato que não ocorreu. Na oportunidade, não citei o nome do obstetra, pois o mesmo não estava presente, mas, caso estivesse, tenho convicção plena de que ele se apresentaria. Enfim, perante uma plateia com a presença de religiosos, argumentei apenas que, segundo o obstetra, o casal proliferava como animais, sem oferecer aos filhos, e a eles próprios, condições humanas para viverem e sobreviverem. Acrescentei que tanto o obstetra como eu acreditamos que tivemos uma atitude cristã e, à semelhança do que dissera o professor de Juiz de Fora, falar em planejamento em local diferenciado para intelectuais, com ar condicionado presente, é muito fácil. Ver pessoas famintas e sem condições de tratar a elas mesmas e aos filhos é uma realidade palpável e que mereceu da nossa parte essa discutível conduta.
Nilson de Camargos Roso
Doutor em Anestesiologia, professor aposentado pela UFTM
n.roso@me.com