As instituições privadas, ao serem administradas, podem fazer tudo o que a lei não proíbe. Já o administrador de uma instituição pública sabe que ele pode fazer apenas o que a lei permite, onde existem muitas amarras, que devem ser obedecidas. No meu primeiro mandato como diretor da FMTM, ocorreram dois fatos interessantes.
No início de 1987, fui procurado, no meu gabinete, por um acadêmico de Medicina que cursava o segundo ano. Após mostrar as mãos calejadas e machucadas, disse-me: “passei minhas férias trabalhando no sítio do meu pai, em Coromandel. Os calos das mãos são devido aos dois meses de trabalho intenso. Sou casado e tenho uma filha. Não tenho como estudar em Uberaba, pois não tenho como manter minha família. O senhor poderia me ajudar, arrumando algum emprego? Se isso não for possível, terei que abandonar o curso”. Imediatamente, falei com Dona Dirce, enfermeira chefe do Centro Cirúrgico. Ela me disse que precisava de alguém na Central de Material e Esterilização (CME).
Na época, a Fundação de Ensino e Pesquisa de Uberaba (Funepu) não era fiscalizada tão intensamente. Assim, esse acadêmico foi contratado para, em noites alternadas, trabalhar na CME pela Funepu. É o único caso que conheci de um acadêmico de Medicina desempenhar função de um técnico de enfermagem por alguns anos.
No quinto ano médico, como ele cursara o técnico em radiologia, passou a trabalhar no pronto-socorro, com essa função, até a sua formatura. Hoje é um radiologista já aposentado pela Universidade Federal de Uberlândia. Essa transgressão de normas demonstrou dois fatos: a viabilização do futuro de uma família e que transgredir normas vigentes, neste caso, compensou.
O segundo caso ficou apenas na intenção da transgressão. Um senhor, carroceiro em Araguari, procurou-me para transferir o filho que estudava Medicina em instituição particular no Sul de Minas, pois, se não conseguisse e não tendo como pagar o curso, o filho abandonaria o mesmo. Esse senhor me mostrou suas mãos grossas e calejadas, prova de serviço braçal pesado. Respondi a ele que “a transferência é somente feita quando o aluno, estudante de Medicina, tem um cargo público e é transferido para Uberaba e, independente de vaga, ele é matriculado”.
Essa foi a resposta de um tecnocrata insensível, sem empatia. Nada mais fiz. O meu arrependimento atual: como já haviam sido transferidos de faculdades particulares para a FMTM filhos de políticos, de juízes e de médicos, através de liminares, eu deveria ter levado esse carroceiro até a Congregação, contar sua história e pedir que ele mostrasse as mãos. Isto faria todos raciocinarem melhor, pois “a história demonstra que é sempre mais fácil ficar na defesa dos mais fortes e não defender o mais fraco”, onde o carroceiro era o mais fraco e os mais fortes tiveram liminares. Talvez nada conseguíssemos, mas, sem dúvida, mexeríamos com a consciência de todos. Caso aprovassem a transferência, não seria uma desobediência civil por transgressão às normas, mas estaria de acordo com Martin Luther King Jr.: “a mim não interessam as leis, mas me interessa quem interpreta as leis” e “é nosso dever moral, e obrigação, desobedecer a uma lei injusta”.
PS.: transgredi outras normas e leis, a fim de ajudar docentes, alunos e servidores. Mas, devido às implicações legais, não posso relatar esses fatos, mas tenho como testemunha o Tribunal de Contas da União, que apontou “impropriedades” na minha gestão.
Nilson de Camargos Roso
Doutor em Anestesiologia, professor aposentado pela UFTM
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