ARTICULISTAS

Uma ingratidão sem limite

Nilson de Camargos Roso
n.roso@me.com
Publicado em 12/12/2025 às 17:30
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Um ditado italiano nos ensina que “as flores da gratidão não nascem no jardim dos reis” (i fiori della gratitudine non crescono nel giardino dei re), o que prova que encontramos mais a gratidão entre as pessoas humildes e pertencentes à grande massa e menos no pico da pirâmide, local dos detentores do poder e do dinheiro, onde se situam as pessoas com melhor IDH (índice de desenvolvimento humano).

É desagradável descrever casos reais de ingratidão, pois essa não nasce de uma mente sadia e nem guarda lógica de raciocínio, condição explicada por Chico Xavier: “os ingratos perderam a memória”. Mas há casos que extrapolam qualquer análise e, por serem grotescos, deixam em nossa mente uma interrogação pela ausência de justificativa de uma atitude realmente humana. 
No início dos anos 70, anestesiei no Hospital São Domingos um senhor de 40 anos com fratura de mandíbula. Foi operado pelo cirurgião-dentista Aziz Carneiro. No dia seguinte ao ato cirúrgico, fui procurado por um senhor, amigo do paciente e responsável pelo pagamento dos honorários do dentista e do anestesista. Perguntou-me o valor da remuneração. Respondi que era 30% dos honorários do cirurgião. Respondeu-me: “é caro só para aplicar uma anestesia”. A vulgaridade dessa afirmação demonstra que ele desconhecia a complexidade do ato anestésico (uso de opioides, hipnóticos, relaxante muscular, anestésico halogenado, com consequente anestesia, parada respiratória e manutenção com respirador artificial). Informei a ele que a cirurgia durou 4 horas, sob anestesia geral, monitorizada por mim ao lado do paciente. Pediu-me que fizesse uma diferença. Disse que faria então 25% do valor cobrado pelo cirurgião. Respondeu-me que era pouco e preferia pagar o total cobrado. Assim o fez.

Passados alguns anos, no final da referida década, o colega cirurgião vascular Wilson Nunes, pela manhã, saía pela porta principal do Hospital São José, quando deparou com vários jovens trazendo um outro, moribundo, vítima de acidente na prática de vôlei no Jockey Club, próximo ao hospital. Ao saltar para alcançar a bola, subiu próximo à haste que estica a rede, mas foi atingido por essa na região inguinal, perfurando artéria e veia femorais, ocasionando anemia aguda devido à intensa hemorragia. Wilson, com as duas mãos, comprimiu a região inguinal lesada e chegou ao centro cirúrgico, onde eu me encontrava. Foi submetido à anestesia geral, reposição da volemia com sangue e soluções salinas, enquanto o cirurgião fazia a sutura dos vasos lesados. Terminada a cirurgia, o paciente foi encaminhado ao quarto, consciente e com bons sinais vitais.

O destino nos prega surpresa, pois o jovem cuja vida foi salva era filho daquele abastado senhor que, anos antes, havia questionado o valor da anestesia. Mas a maior das surpresas foi essa: antes da alta hospitalar, ele foi acertar os valores dos gastos hospitalares e dos honorários médicos. Ao saber dos valores, disse: “pago somente o hospital e não pagarei nem o cirurgião, pois fiquei sabendo que ele é amigo do Dr. Nilson.” Quando tomei conhecimento do fato, eu disse ao Wilson que deveríamos abrir mão dos honorários, pois a violência e a incompreensão do pai eram conhecidas. Assim o fizemos.

Não há como fazer a titulagem desse ato, porque se houvesse mais alguns minutos na demora do atendimento do jovem, certamente ele teria ido a óbito. O pai, rico empresário, não avaliou sequer o custo-benefício, onde a “mercadoria” em questão era a vida do próprio filho. Essa forma de ingratidão, não a mim, mas ao cirurgião que salvou o filho, foi a mais grave que me lembro e não tenho um adjetivo adequado para expressar a pequenez de tal ato, onde o cirurgião, que nada teve a ver com o passado, também não recebeu seus honorários. O ocorrido demonstra uma atitude animalesca, medular, sem a integração das áreas do córtex cerebral e do sistema límbico, responsável pelas emoções. O ocorrido retrata mais que uma ingratidão extrema, mas um caso de um cidadão que perdeu a memória.
 

Nilson de Camargos Roso

Doutor em Anestesiologia, professor aposentado pela UFTM 

n.roso@me.com

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