O piano sempre exerceu sobre mim um enorme fascínio. As primeiras recordações que tenho dele são bastante imprecisas, porém carregadas de emoção. Quando minha família passou a residir na Pampulha, em Belo Horizonte, meus pais tiveram o bom senso de nos matricular em escolas católicas de congregações francesas. Minha irmã e eu no Colégio Santa Marcelina e meu irmão, no Dom Silvério, Colégio Marista Diocesano.
Eu tinha seis anos de idade quando minha mãe resolveu matricular os três filhos no curso de piano. Apesar de o Santa Marcelina ser uma escola exclusivamente feminina, abriu um precedente em relação a aceitar o ingresso do meu irmão, em virtude de ele ser ainda criança e pelo fato de nós morarmos a dois quarteirões do Colégio. Foi assim que Irmã Cecília tornou-se minha primeira professora de piano.
Naquela época, as meninas de boa família deviam saber tocar piano, assim como ter conhecimento de bordado, francês e até de etiqueta social. O colégio oferecia essas opções e era preciso aproveitá-las. A escola dedicava uma ala ao ensino de piano. Lembro-me bem do amplo cômodo onde, do lado direito de quem entrava, havia uma sucessão de salas de tamanho apropriado para abrigar um piano, um pequeno armário e uma cadeira para o professor. Cada saleta tinha uma porta com vidro na metade superior, permitindo que pudéssemos ser observadas do lado externo. Às vezes, as Irmãs colocavam alunas do internato para fiscalizar nossa hora de estudo, pois éramos proibidas de brincar no instrumento em horário de estudo.
Não por acaso, Irmã Cecília tinha o nome da padroeira da música. Ela era uma freira meiga e gentil que usava óculos de lentes bem grossas e deixava entrever seus cabelos brancos sob a rebuscada touca que completava seu hábito, sempre impecável. Como boa pedagoga, tinha criado um sistema muito divertido para musicalizar crianças, onde cada nota era representada por um símbolo que remetia ao fantástico mundo do imaginário infantil: Rei Donato, a Régua, o gatinho Mimi, a Fada, o Sol, o Lago e o Sino. Embaixo de cada nota de nossas primeiras músicas desenhávamos a figura que a representava e coloríamos com capricho. Não me lembro de ter tido dificuldade de aprender a ler notas musicais como acontece com a maioria dos alunos que atendi ao longo da minha vida como professora.
Quando estudávamos direitinho, éramos levadas pela mão a uma sala que ficava bem ao fundo e que Irmã Cecília mantinha sempre trancada. Ali ela guardava pequenos mimos, com decalques, figurinhas, gravuras, santinhos, medalhinhas, balas, bombons, pirulitos e muito mais. Como eu amava entrar ali! Ela logo pedia para eu escolher um presente e era muito difícil decidir porque tudo me parecia desejável. Que saudade! Meus olhos brilhavam de felicidade, e o local exercia verdadeiro fascínio sobre todas as alunas.
Das coisas belas que se alojaram no passado nos vem sempre uma luz e uma capacidade de ver o mais banal com algum encantamento. O poderoso ciclo da existência engloba todos os acontecimentos e todas as pessoas que passaram por nós e nos auxiliaram a construir nossa personalidade e definir nosso projeto de vida. No final, tudo e todos têm significado como fases de um processo.
Lembro-me perfeitamente de um evento ocorrido quando eu tinha 10 anos e passava férias em Uberaba. Minha família quando vinha de Belo Horizonte hospedava-se em casa de meus avós maternos, Rosa e Felício Frange, à rua Pires de Campos, no alto Estados Unidos. A poucos metros de distância da casa de meus avós morava tia Amélia, viúva de Paulino Frange, irmão de meu avô. Lá tinha um piano vertical na sala de visitas, cuja porta dava diretamente para a rua. Nesse dia, eu tinha ido passear lá para rever uma prima e logo me pediram para tocar piano. Apesar da timidez, atendi o pedido e nem reparei que enquanto tocava as pessoas que passavam pela calçada iam parando e se aglomerando para ouvir. Dali a pouco minha mãe entrou esbaforida, achando que tinha acontecido algum acidente comigo. Logo ela percebeu a inusitada “plateia” e sentiu-se orgulhosa da pequena “pianista”. Senti-me muito importante e nunca esqueci da constatação do estranho poder que a música exerce sobre as pessoas. A peça era “Promenade à Âne” (O passeio do burrinho), peça característica de Paul Wachs.
Aos 12 anos me tornei “professora” de piano. Como a Pampulha ficava a 10 km do centro da cidade, algumas vizinhas pediram à minha mãe que eu fizesse a iniciação musical de seus filhos, pois já tinha seis anos de estudo. Meio a contragosto, mamãe concordou. E foi assim que aos 12 anos passei a ter cinco alunos de piano. A primeira providência que tomei foi comprar uma agulha de tricô. Irmã Cecília dava aula apontando na partitura com uma agulha de tricô.
Fiz tudo igualzinho e hoje acho muita graça da minha “mise en scène”, mas o fato reforça a importância do mestre na formação dos alunos. Quer queira, quer não, o professor será sempre um modelo para seu aluno, principalmente se for admirado pelo educando.
Eu me encontro nas recordações do passado, no rico “porão” onde armazenei os meus sonhos e onde dividi esses sonhos com minha família.
A partir dessa primeira experiência jamais abandonei o magistério musical, que considero uma missão. Voltamos para Uberaba em julho de 1967. A música me escolheu, e não o contrário, pois nunca consegui imaginar minha vida longe dela. A semente que Irmã Cecília semeou brotou e floresceu nas mãos da grande mestra, D. Odette Carvalho de Camargos, mas ... essa é uma outra história!
Olga Maria Frange de Oliveira (pianista, maestrina, regente do Coral Artístico Uberabense, pesquisadora da História da Música em Uberaba, ex- Diretora Geral da Fundação Cultural de Uberaba)