Nos últimos tempos temos sido bombardeados por notícias que nos remetem a uma dura realidade
Nos últimos tempos temos sido bombardeados por notícias que nos remetem a uma dura realidade, em que tudo gira em torno de temas recorrentes: propina, falsificação, roubo, desvios de conduta, políticos corruptos, subornos, crimes do colarinho branco e muito mais.
Quanto mais tomo conhecimento deste status quo, mais a figura do meu avô materno me vem à memória. Felício Frange foi um grande homem. Descendente de libaneses, embora tenha nascido no Brasil, trazia a etnia árabe em suas entranhas. Era libanês no paladar, nas expressões árabes misturadas ao português para enfatizar suas opiniões, nos traços fisionômicos, na figura altiva e imponente, na forma como comandava sua família com pulso firme, como um verdadeiro chefe de um clã libanês. Lia e escrevia árabe com desenvoltura. Era respeitado e estimado pelos irmãos. E que orgulho tinha de ter conseguido fazer de seu irmão, Jorge Frange, um grande médico. Com muita dedicação, custeou seus estudos no Rio de Janeiro e até o acompanhou numa viagem a Belo Horizonte para que frequentasse um curso complementar de manipulação farmacêutica. Logo ele que jamais viajava, nem mesmo admitia malas em sua casa.
Rosa Bessim, sua “Rausê”, companheira de vida, veio do Líbano com 13 anos de idade, a passeio com seus irmãos. Nunca mais voltou e manteve um acentuado sotaque até o fim de sua vida. O casal teve 6 filhos: Esmeralda, Neif, Olga (minha mãe), Dalva, Maria e José. Este último morreu nos primeiros anos de vida.
Em minhas pesquisas realizadas no Arquivo Público, deparei-me com uma matéria publicada no jornal “Lavoura e Comercio” de 6 de julho de 1940. Era uma reportagem de página inteira enaltecendo meu avô, sob o títul “O maior negociante de gado em Uberaba é também o maior contribuinte dos cofres públicos”. O extenso artigo foi publicado numa edição especial do jornal, que homenageava personalidades uberabenses que faziam a diferença pelo trabalho desenvolvido em prol do engrandecimento desta progressista cidade. Foram destacados: o prefeito Whady Nassif, Dr. Fidélis Reis, João Schroden Júnior e Felício Frange.
Li, emocionada, a matéria que descrevia Felício Frange como o maior marchante de gado de Uberaba e região. Só no Mercado Municipal ele era fornecedor exclusivo de carne verde e suína de vinte boxes, sem contar os diversos açougues espalhados pelo município. Era, comprovadamente, um negociante honesto e benquisto, oferecendo preços acessíveis e produtos de qualidade. Os comerciantes de carne do Mercado, embora tivessem livre acesso ao Matadouro, preferiam receber a carne das mãos do Sr. Felício, que as selecionava como ninguém e oferecia um produto de primeira a preços módicos. Os impostos que ele pagava pontualmente aos cofres públicos eram imprescindíveis para a manutenção dos serviços essenciais do município.
Vovô Felício acordava, impreterivelmente, por volta de 4h30 da madrugada. Tomava uma boa ducha de água fria, que o revigorava e, às 6 horas em ponto já estava no Matadouro Municipal. Após a triagem e separação das carnes, ele seguia para as casas assistenciais: Asilo São Vicente de Paulo, Asilo Santo Antônio dos Pobres, Orfanato Santo Eduardo e Instituto de Cegos do Brasil Central. Em cada uma ele entregava carne, que doava em abundância, garantindo suprimento diário a todas elas. Era um compromisso sagrado entre ele e as entidades filantrópicas, sem nenhum contrato firmado entre as partes que o obrigasse a isso. Apenas depois do dever cumprido retornava ao lar, onde tomava outro banho, colocava um pijama azul-claro e confortáveis chinelos nos pés, almoçava por volta de 10h30 da manhã, sentava-se no amplo alpendre situado na parte dos fundos de sua residência e lá permanecia a maior parte do dia, comandando a tudo e a todos.
Naquele tempo, as casas eram o retrato de seus proprietários. Sabia-se logo de suas virtudes e defeitos. Jamais houve luxo ou ostentação à sua volta e tudo era bastante funcional. Móveis austeros e alguns poucos objetos de cunho decorativo. Na sala de jantar havia dois quadros pintados pela primogênita, tia Esmeralda.
O que ficou registrado em minha memória, de maneira indelével, é a longa fila de mendigos que se formava diariamente no portão lateral esquerdo da residência, à espera de uma esmola ou de um prato de comida que jamais era recusado. A maioria portava uma pequena sacola onde levava um pouco de carne para a família. Tinha também algumas canequinhas de ágata, separadas para matar a sede de leprosos, numerosos naquela época. A maioria das pessoas não atendia às súplicas desses infelizes. Meu avô nunca permitiu isso em sua casa.
Acredito que a memória é o único relato confiável, pois só retemos na memória aquilo que amamos. Hoje eu queria apenas abrir um álbum antigo de fotografias para reviver esses momentos tão caros de minha infância. Vovô Felício era um homem como poucos! A dimensão de sua estatura moral eu só vim a conhecer na maturidade. Em sua viagem transcendente, meu avô Felício, acima de todos os valores, deixou-nos a saudade de sua riqueza humana.
De hábitos imutáveis e temperamento inflexível, o único dia que deixou de chegar em casa às 10h30 da manhã, fez soar um sinal de alerta. Às 13 horas, meu tio Neif saiu dizendo que iria buscar o seu corpo. Retornou com ele sem vida, encontrado no caminho de volta do matadouro. Aquilo me marcou muito.
O que é bonito enche nossos olhos de lágrimas. Temos muito orgulho de sermos descendentes de um homem tão especial. Seus filhos, netos, bisnetos e agora trinetos ostentam seu sobrenome com muito orgulho. É uma maneira de homenageá-lo. Meu querido avô, para nós, o senhor chegou àquele ponto em que as pessoas se transformam em mito. A benção, vovô! Até um dia...
(*) Pianista, professora, maestrina, regente do Coral Artístico Uberabense, pesquisadora da História da Música em Uberaba, Ex-Diretora Geral da Fundação Cultural de Uberaba