ARTICULISTAS

Memórias afetivas da infância

Quase todos os dias ao sair de casa, por força do novo traçado do trânsito em Uberaba...

Olga Maria Frange de Oliveira
Publicado em 30/11/2017 às 20:33Atualizado em 16/12/2022 às 08:40
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Quase todos os dias ao sair de casa, por força do novo traçado do trânsito em Uberaba, passo em frente da casa dos meus saudosos avós maternos, ambos de origem libanesa, Felício Frange e Rosa Bessin Frange, na rua Pires de Campos, nº 83, no alto Estados Unidos.

Nenhuma vez consigo deixar de voltar os olhos para admirá-la e, mesmo na correria do dia a dia, as lembranças do passado retornam num verdadeiro turbilhão de emoções incontroláveis. Ah! Como gosto das casas antigas, do início do século passado! As linhas arquitetônicas nunca são retas e frias, pelo contrário, há sempre uma profusão de detalhes ornamentais na fachada, no contorno das janelas e dos portais externos, assim como nas grades dos portões, com seus arabescos curvilíneos. Na parte inferior dos portões vislumbramos as iniciais do proprietário em letras destacadas.

No lado esquerdo dessa casa térrea havia um grande portão que permitia a entrada para uma garagem coberta que situava-se bem ao fundo. No caminho cimentado de acesso à garagem logo nos deparávamos com uma parreira de uvas muito saborosas, cujas folhas eram utilizadas por minha avó para fazer “charutos”, deliciosa iguaria árabe. Havia ainda dois bancos de cimento semelhantes aos colocados nas praças públicas, e um singelo e charmoso barquinho de porte médio feito de cimento que, ao abrirmos a torneira, lançava um jato d’água, como se fosse uma fonte. Sempre fui encantada com esse barquinho. Há poucos meses, em julho deste ano, tive a grata surpresa de encontrá-lo na fazenda de meu primo Dr. Cristiano Jorge Frange Miziara, cuja esposa, Maria Helena, teve a sensibilidade de removê-lo com zelo de quem sabe o valor das pequenas preciosidades que fizeram parte de um passado familiar.

Ao fundo, na garagem, via-se um belo carro Oldsmobile conversível vinho com capota bege, sempre reluzente, como uma joia valiosa. Até onde a memória alcança, ele era caprichosamente lavado, encerado e polido diariamente por um serviçal muito dedicado ao meu avô. O fato de o automóvel ser a menina dos olhos do seu patrão, fazia com que Natalino colocasse a alma no cumprimento da tarefa. Vovô Felício só o dirigia aos domingos, quando ia ao Mercado Municipal encontrar seus inúmeros amigos e se inteirar das novidades. Nesse dia trajava-se com mais apuro e usava seu terno de linho 120 branco e chapéu Panamá. Quando meu avô morreu, em 1968, o golpe foi muito duro para o leal amigo Natalino, que foi ficando triste, definhando e, em pouco tempo, também partiu. E foi Antônio, filho de Natalino, quem passou a cuidar do carro.

Na ala direita da casa é que ficava a entrada principal, por meio de um portão menor que dava acesso à pequena sala de visitas, discretamente posicionada à direita de quem transpunha o portão. Lá dentro, avistávamos na parede dois quadros de temática religiosa do pintor uberabense Anatólio Magalhães. Se seguíssemos em frente pelo corredor, alcançávamos uma ampla e agradável varanda. Lá era, na realidade, o “coração” da casa. Local onde os familiares se assentavam para prosas infindáveis, saboreando frutas frescas do quintal, e tinham acesso à cozinha, reduto de deliciosas guloseimas da culinária libanesa, com coalhada; pão com azeite, sal e “zátar”; “slebria”, biscoito caseiro de sal frito; “ataif”, pastel de queijo ralado com calda bem rala, e muito mais...

O assoalho da casa era de tábua corrida e ainda consigo me lembrar dos passos vigorosos do meu avô caminhando pela casa. Homem alto, de compleição forte, bem apessoado, com temperamento exaltado e hábitos rotineiros imutáveis. Sua pessoa contrastava com a figura franzina e delicada de minha avó, que se desdobrava para servi-lo. As paredes das duas salas e o corredor que levava aos quartos apresentavam pinturas elaboradas feitas a óleo, na metade inferior. Essa pintura, delimitada por um friso de madeira, revelava textura espessa, e era executada por meio de moldes, com amplas pinceladas circulares, em tom esverdeado. O efeito visual artístico somado ao brilho da tinta era de muito bom gosto.

Nessa casa passei todas as férias escolares ao lado dos meus primos e tias, dos três aos treze anos, período em que residi em Belo Horizonte.

Porém, a fiandeira do tear da vida, durante todos esses anos tecia, caprichosamente, as tramas dos nossos destinos e foi levando, um a um, os personagens de duas gerações deste núcleo familiar. Quando os moradores dessa casa se foram, um ciclo de vida se fechou para a geração dos netos. Perdemos o frescor da juventude e amanhecemos mais velhos. A benção meus avós. Saudades!...

(*) Pianista, professora, maestrina, regente do Coral Artístico Uberabense, pesquisadora da História da Música em Uberaba, ex-diretora geral da Fundação Cultural de Uberaba

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