Miguel Proença, pianista brasileiro considerado uma das figuras mais representativas do piano no século XX, faleceu em 22 de agosto próximo passado, vítima de falência múltipla de órgãos. Ele estava internado desde o mês de junho no Hospital São Vicente, localizado no bairro carioca da Gávea.
Um admirador assim expressou sua dor: “O piano está silente. As notas que dele soavam fluidas e melodiosas, emocionando a todos, dão lugar ao vazio do luto. Sem colcheias, semínimas e semibreves, ficou no ar apenas uma pausa infinita...”. Foi assim que os amantes do piano erudito receberam a notícia de sua morte.
Ao sair de cena, após mais de 60 anos de atividade profissional, o pianista gaúcho deixa também expressivo legado como educador musical e difusor das obras de autores brasileiros. Filho de um farmacêutico, Miguel Proença nasceu na cidade de Quaraí, no Rio Grande do Sul, que fica na fronteira com o Uruguai. Seu primeiro contato com a música ocorreu quando, ainda criança, ouviu o som de um piano vindo de um casarão, na interiorana cidade gaúcha onde nasceu e onde começou a ter aulas de piano, ainda na infância. Estava passeando de mãos dadas com sua mãe, quando foi atingido, inadvertidamente, por uma seta de cupido, tornando-se alvo de uma “Paixão à primeira vista pelo piano”. Se assim aconteceu, podemos dizer que, no campo musical, essa paixão repentina foi tão sólida e duradoura, que norteou a vida e os passos do pianista ao longo de 86 anos de amor incondicional ao seu instrumento.
Proença ganhou o mundo à frente de um piano. Tornou-se um grande porta-voz da música erudita brasileira na Europa, Ásia e América do Norte. Iniciou seus estudos de piano aos cinco anos com a professora Carmen Gallo Vidal. Na adolescência, passou a ter aulas com Carmen Pozzer e, posteriormente, com o professor Natho Henn. Com a morte de Henn, em 1958, o jovem pianista começou a tocar em clubes, piano-bar, festas e programas de auditório, ao mesmo tempo que frequentava a Faculdade de Odontologia, graduando-se em 1961 pela Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul.
Nesse período, apaixonou-se por Marly Lisboa, também pianista, que foi a grande incentivadora da sua volta aos estudos do piano. Anos mais tarde, eles se casaram na Alemanha, no período que Miguel era bolsista do governo alemão no reconhecido DAAD, que mantinha um programa de bolsas de estudos do governo alemão no Brasil. À época, tornou-se a melhor opção para quem queria estudar na Alemanha com tudo pago, após conquistar a bolsa por concurso.
Na Escola Superior de Música de Hamburgo, Miguel estudou com a professora Eliza Hansen e, posteriormente, com o russo Yakov Zak e o pianista suíço Karl Engel, na Escola de Hannover, onde fez seu doutorado em piano, concluído em 1968. Após o doutorado, realizou uma série de concertos pela Alemanha e, ao fim de dois anos, regressou ao Brasil, estabelecendo-se no Rio de Janeiro a partir de 1970.
No Rio, estudou com Arnaldo Estrella e com Homero de Magalhães, dois gigantes do piano brasileiro. Segundo Miguel Proença: “A experiência com Homero foi muito importante. Ele era de uma grande espontaneidade musical/interpretativa, tinha um belíssimo fraseado, bem como demonstrava vasta cultura e inteligência musical, qualidades que me inspiraram a estudar mais e melhor”.
A carreira no exterior também foi singular, assim como a colaboração com músicos de projeção mundial, como o violinista italiano Salvatore Accardo e o flautista francês Jean-Pierre Rampal. Ele foi um dos pianistas responsáveis por levar a música brasileira de concerto para o exterior. Proença admirava o estilo nacionalista e a alta qualidade das obras para piano criadas por compositores como: Villa-Lobos, Camargo Guarnieri, Francisco Mignone, Radamés Gnáttali, Guerra Peixe, Marlos Nobre, Edino Krieger, Lorenzo Fernandez, Ernesto Nazareth e Alberto Nepomuceno, entre outros.
Como educador e gestor na área da cultura no Rio de Janeiro, o pianista tornou-se diretor da Sala “Cecília Meireles” em 1987, voltando a ocupar o cargo entre abril de 2017 e dezembro de 2018. Também dirigiu a Escola de Música Villa-Lobos e assumiu o cargo de secretário municipal de Cultura do Rio entre 1983 e 1988, período em que fundou a Orquestra de Câmara do Rio de Janeiro. Em 2019, assumiu o posto de presidente da Fundação Nacional de Artes (Funarte), coroando uma carreira vitoriosa “da capo al fine”.
Dono de uma sonoridade singular no toque do piano, Miguel difundiu a música clássica em todo o país através do projeto “Piano Brasil”, criado com o objetivo de promover masterclass e recitais em cidades e ambientes onde o acesso à música erudita era mais restrito.
Entre suas distinções, recebeu a Comenda da Ordem do Rio Branco, no grau de comendador (1991); o prêmio da Unesco “Patrimônio da Música Brasileira” (2005); o título de Cidadão Cultural de Kobe (Japão); em 1988 e 1989, foi escolhido pela Associação Paulista de Críticos de Arte (APCA) como o “Melhor Pianista do Ano”; foi indicado “Artista Steinway”, figurando no Wall of Fame da Steinway&Sons, ao lado dos mais ilustres pianistas da história; apresentou-se no Carnegie Hall, em New York (2008), fazendo jus à seguinte crítica no New York Times: “Miguel Proença demonstrou domínio técnico e belíssima sonoridade no concerto de ontem”. (H. Schonberg).
Ele esteve inúmeras vezes em Uberaba, apresentando-se na Sala “Cecília Palmério” e também no Teatro “José Maria Barra”, do Sesiminas, em concertos memoráveis. Sempre que vinha à nossa cidade, realizava masterclass no auditório do Conservatório Estadual de Música “Renato Frateschi” e se encontrava com alguns de seus ex-alunos.
Tive a felicidade de ter sido aluna desse grande mestre do piano na Faculdade de Artes da Universidade Federal de Uberlândia. Sob sua supervisão, preparei um recital exclusivamente com obras de Heitor Villa-Lobos, que aconteceu no salão nobre do Jockey Club de Uberaba. Aprendi muito com ele e o levarei sempre em minhas melhores lembranças. Lélia Bruno manteve laços de amizade com Proença bastante duradouros. Também nosso estimado e talentoso pianista Fernando Calixto foi aluno de Miguel, no Rio de Janeiro, para onde viajava, regularmente, em busca de aperfeiçoamento.
Não poderia deixar de recordar o período de estudos e aprendizado com esse verdadeiro mago do piano, dono de uma memória prodigiosa. Ensimesmada, fico me perguntando: “Onde ele estará agora, meu Deus?”. Com certeza, está alegrando, com sua arte, as paragens celestiais do plano espiritual.
Seu velório foi realizado na Sala “Cecília Meireles”, um dos templos sagrados da música no Rio de Janeiro. Descanse em paz, meu inesquecível Mestre!!!