Se as pessoas soubessem o poder da música e a fascinação que ela exerce sobre os espíritos, como elas viveriam melhor!
A música tem a capacidade de penetrar nos mais recônditos escaninhos da alma. Ela lida diretamente com a emoção e permite muitas vezes uma catarse. O ouvinte vivencia não mais a sua dor, mas toda a dor do universo, não mais a singularidade de sua alegria, mas a alegria em sua plenitude, não emite mais um lamento único, mas sente, através da cadeia sonora, que o universo se une e emite com ele uma queixa sentida e pungente. E a gente pensa... como é que alguém captou tão bem essa emoção? Em que fração infinitesimal do tempo outro ser humano vivenciou e compartilhou dessa emoção que nós, em nosso egoísmo, julgamos só nossa?
Há músicas que contêm memórias de momentos vividos. Trazem-nos de volta um passado distante. Lembram-nos de lugares, objetos, rostos, gestos, sentimentos... Durante a nossa existência vamos, inconscientemente, compondo a trilha sonora de nossas vidas. Momentos sublimes e mágicos se alternam com outros envoltos em sentimentos de melancolia e dor. As músicas que tocam as nossas emoções nós as ouvimos vezes sem conta. Sabemo-las de cor, mas queremos ouvi-las de novo para sentir a sua beleza uma vez mais, para rir ou chorar.
A música é uma linguagem abstrata, configurando-se na verdade uma linguagem do intangível, aquela que desnuda e revela a própria alma. Ela pode ser expressiva, comunicativa, comovente, nostálgica, inspirada, sensual, mística, devocional, mas estará sempre tentando revelar uma emoção desconhecida ou tocar um ponto qualquer de nossa sensibilidade. Segundo Yehudi Menuhin, “a música é a arte que junta o espiritual e o sensual, que pode transmitir êxtase livre de culpa, fé sem dogma, amor como uma homenagem e o próprio homem convivendo com a natureza e o infinito”.
A meu ver, a expressão da música erudita, chamada comumente de música clássica, significa conhecimento da tragédia da humanidade, afirmação do destino humano, com toda carga de coragem e busca da superação dos seus próprios limites. Beethoven afirmava que “a música é capaz de reproduzir, em sua forma real, a dor que dilacera a alma e o sorriso que inebria”.
Na galeria dos grandes mestres, cada um projetou a seu modo a sua visão do mundo. Mozart, com seus contornos límpidos e sua graciosidade característica, desperta o nosso amor. Em Bach, encontramos a resignação edificante e consoladora ao sofrimento e à morte, qual uma entrega à vontade paternal de Deus. Para ele a meta final da música seria a glória de Deus e o prazer da alma. Beethoven reproduz o conflito entre dois temas de caráter diverso e gera o drama e a vitória triunfal do homem sobre as paixões mundanas. Em Chopin, a criação musical traduz emoções em seu estado bruto. Oscar Wilde chegou a dizer: “depois de tocar Chopin, sinto-me como se chorasse por pecados que jamais cometi e lamentasse tragédias de que não fui vítima”. Debussy capta, com suas harmonias estáticas, a capacidade dos sons “descreverem” e “pintarem” a natureza, com suas cores e sua luminosidade, numa arte sensorial antes de tudo. A música dos grandes compositores é um caminho entre nós e o infinito.
Herman Hesse formulou um dos mais belos pensamentos sobre o tema ao dizer que “o músico é um portador de luz, multiplicador de alegria e claridade na terra. A sua obra participa da harmonia dos deuses e das estrelas. Tudo que precede o resultado final desaparece: a tristeza, o amor, a melancolia, a solidão, o sofrimento”. O que se percebe é que são as obras mais perfeitas que não deixam suspeitar as lutas e os combates que lhe precederam. Elas permanecem instigantes, belas, atemporais, atravessando os tempos e desafiando os incrédulos, consubstanciando na verdade o que definiríamos como o “Mistério da Fé” e a prova maior da centelha divina que habita o ser humano.
Rubem Alves, em momento inspiradíssimo, assim se expressou: “os artistas são seres a quem Deus deu o poder para ver e ouvir aquilo que os mortais comuns não veem nem ouvem. E sua missão é tornar visível e audível aos mortais comuns aquilo que eles veem e ouvem com os olhos e os ouvidos da alma”. A música erudita é aquela que nos faz comungar com a eternidade. Ouvi-la é uma forma de oração.
(*) Pianista, professora, maestrina, regente do Coral Artístico Uberabense, pesquisadora da História da Música em Uberaba, ex-diretora geral da Fundação Cultural de Uberaba