Ninguém sabe o que é um dom, mas nosso coração consegue reconhecer um verdadeiro artista. O artista se torna intérprete da linguagem divina e traduz para nós, simples mortais, a grandeza do amor de Deus. A música foi considerada uma linguagem dos deuses desde seus primórdios.
Numa apresentação musical ou numa performance de um grande intérprete, pode-se abrir uma fresta por onde espiarão juntos o artista e seu espectador, como dois amantes. E foi isso que aconteceu no dia 1º de junho último no Museu de Arte Sacra de Uberaba. São tão raras as oportunidades que atualmente temos em nossa cidade de assistir recitais de música erudita!
Às vezes penso que, anos atrás, chegamos a formar um público cativo, fiel às apresentações na área musical, criando projetos com “Sexta Clássica” e “Talentos da Terra”. Quantos grandes intérpretes se apresentaram nos palcos uberabenses! Infelizmente, o prolongado hiato no setor afastou esse público e impossibilitou o incremento de novos adeptos.
Há cerca de um mês, meu marido e eu fomos ao MAS assistir a um recital de piano de dois talentosos pianistas, Valéria Murata e Ricardo Gomes, este último uberabense. Fomos recepcionados pelo diretor do museu, Hélio Siqueira, que exclamou com alegria: “Graças a Deus que amigos como vocês vêm nos prestigiar e não nos deixam sozinhos! Olga, onde está o público de Uberaba? O evento foi amplamente divulgado. Não entendo o desinteresse das pessoas!”.
Trinta dias se passaram e eis que Maria Célia Vieira (pianista) e a cantora uberabense Giselle Janones se apresentaram no mesmo local, num duo “afinadíssimo”, com um repertório de primeiríssima qualidade. Trechos de célebres óperas dos compositores italianos Giulio Caccini e Giacomo Puccini, assim como do francês Léo Delibes, ao lado da sempre bela “Plaisir d’amour”, do Padre Martini, nos enlevaram o espírito.
Villa-Lobos, representado por duas obras-primas, emocionaram o seleto auditório. A Bachiana n° 5 arrebatou o público desde a frase inicial. Olha que eu já tinha ouvido essa melodia inúmeras vezes! Mas a excepcional cantora Giselle conseguiu atravessar a barreira do mundo real e fazer-nos mergulhar no mais recôndito de nossa alma. A melodia atingiu a “corrente de energia universal” que circulava pela igrejinha de Santa Rita e fez vibrar nossos corações. Não houve quem deixasse de se emocionar. O que é bonito enche os olhos de lágrimas. Lágrimas correram pelas faces de homens e mulheres, indistintamente. Muitos procuravam disfarçar o instante de fraqueza. Foi uma catarse coletiva.
A segunda peça do velho Villa foi a “Dança do Martelo”, que, exalando brasilidade e brejeirice em suas notas repetidas, desenhou o ritmo inconfundível da autêntica arte tupiniquim. Domínio perfeito da dicção aliada à técnica vocal.
Delibes coroou o espetáculo com uma aula de técnica virtuosística em diálogos sincronizados entre o piano e a cantora. A extensão da tessitura da voz de soprano foi superada em seus limites. Inacreditável!
Quando, ainda em êxtase, julgávamos voltar à realidade, Giselle Janones nos brindou com o “Concerto para uma voz”, de Saint-Preux”, fechando com chave de ouro a manhã musical ensolarada e outonal.
Giselle é uma figura mignon, de cabelos loiros, delicada como uma rosa. E floral era seu vestido, com aplicações de rosas encarnadas de tamanhos variados. Ela fala baixinho, quase não conseguíamos escutar suas palavras quando se dirigia ao público. Mas, paradoxalmente, sua voz angelical brincava com os pianíssimos executados à “bocca chiusa”, para, em seguida, chegar até os fortíssimos poderosos, com sua voz bem timbrada apoiada no domínio total do diafragma.
Giselle e Maria Célia, obrigada por vocês existirem! Ah! Jamais se esqueçam que Giselle Janones é filha de Uberaba, terra de grandes talentos desde 1815.
(*) pianista, professora, maestrina, regente do Coral Artístico Uberabense, pesquisadora da História da Música em Uberaba, ex-Diretora Geral da Fundação Cultural de Uberaba