São seis horas da tarde! Ainda paira no ar o eco das compassadas badaladas do relógio...
São seis horas da tarde! Ainda paira no ar o eco das compassadas badaladas do relógio de pêndulo da sala de jantar.
Ó tempo, volta pra trás! Ouvi essa expressão em algum lugar, não me lembro onde nem quando. Talvez num desses fados ternos e sentimentais, que tocam tão profundamente a sensibilidade das pessoas.
O certo é que aqui estou eu, numa época conturbada, em meio a um alucinante processo de transformação dos costumes, e lutando freneticamente contra a maré para conseguir alcançar uma vida mais plena em todos os sentidos. Meu suor se mistura ao de milhares de outras criaturas, tão fracas e impotentes quanto eu. Nos meus sonhos permanece a nostalgia do passado. Um passado que idealizo qual um refúgio tranquilo, sem crimes, violência, inflação, fome e desemprego.
Para mim, o passado vive mergulhado numa aura de encantamento e mistério, que não existe no porvir. Há algum tempo, ouvi um discurso cuja tônica central era – “O tempo não volta mais! Não, não volta.” Esporadicamente, essa frase era repetida como um estribilho. Sem me dar conta, o eco dessas palavras calou tão fundo no meu ser que, ainda agora, ao escrever sobre o fato, ouço nitidamente as palavras: “O tempo não volta mais! Não, não volta.” Essa é uma verdade imutável. A marcha ininterrupta do tempo caminha sempre para diante. Junto com ele seguimos todos nós, rumo ao desconhecido. Por quê? Para quê? Nem ao menos a possibilidade de um pequeno atraso existe! Retardatários somos nós, o tempo nunca.
Ainda ontem, mergulhada em minhas pesquisas no Arquivo Público de Uberaba encontrei, por puro acaso, uma extensa nota sobre o casamento dos meus pais na coluna “Sociais” de um exemplar do “Lavoura e Comércio” de meados do século passado, com suas folhas amareladas denunciando a ação do tempo no papel. Sob o títul Núpcias: Frange – Oliveira, seguia-se a descrição pormenorizada do casamento civil e religioso da Srta. Olga Frange com o Sr. Eudóxio de Oliveira. Não pude conter as lágrimas, pois mergulhei no túnel do tempo. Tudo remetia ao momento de júbilo de um jovem casal que ensaiava os primeiros passos de uma nova e promissora vida conjugal. Reconheci os nomes dos padrinhos e, à medida que ia lendo, o semblante de cada um me aflorava à mente. Eram familiares e amigos muito íntimos do casal. O colunista do jornal comentava a profusão de presentes, a recepção na casa dos pais da noiva, onde uma farta mesa de confeitos e doces finíssimos, assim como licores e vinhos da melhor qualidade aguardavam os inúmeros convivas. Os nubentes partiriam em viagem de lua de mel para o Rio de Janeiro. De repente, deparo-me com uma frase que fez disparar meu coraçã “A cerimônia religiosa foi abrilhantada pela afinada Orquestra do maestro João Villaça Júnior”. Meu Deus, Villaça Júnior, que foi alvo de profunda pesquisa, cuja vida eu vasculhei nos porões do passado para resgatá-lo das sombras do esquecimento. Uma trajetória de vida que se mistura com o cenário musical da primeira metade do século passado e o torna figura onipresente em todos os momentos especiais, em que sua arte foi parte imprescindível para torná-los inesquecíveis.
Agora, num passe de mágica, o vejo tão próximo do meu núcleo familiar. Senti-me intimamente ligada a esse grande músico, cuja alma sensível pude desvendar através de sua linguagem musical. A ação impiedosa do tempo levou consigo todos os personagens daquela bela história de amor: os pais dos noivos, os noivos, o padre, os padrinhos, o maestro, o eco da bela marcha nupcial de Mendelssohn... Nada foi poupado. A última personagem a ser resgatada pela marcha inexorável do tempo foi a noiva, que usou em suas bodas um lindo vestido de tule branco com dezesseis saias superpostas arrematadas com flores de laranjeira naturais. Seus olhos sempre brilhavam ao recordar a imagem surreal criada pelo efeito visual proporcionado pelo tecido. Uma verdadeira obra de arte, segundo ela. Mamãe partiu em 31 de março de 2017, e junto com ela um ciclo se fechou.
Nesse mês de maio, especialmente difícil para mim, pois encerra o Dia das Mães e o aniversário de minha saudosa mãe, agradeço a Deus a inesperada oportunidade de viajar no tempo e participar de um enlace matrimonial acontecido em 6 de novembro de 1949.
O tempo não volta mais! Não, ele não volta...
O relógio marca, indiferente, 19 horas e quarenta e cinco minutos.
Olga Maria Frange de Oliveira (pianista, maestrina, regente do Coral Artístico Uberabense, pesquisadora da História da Música em Uberaba, ex-Diretora Geral da Fundação Cultural de Uberaba).