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Pequenas grandes coisas

Olga Maria Frange de Oliveira
Publicado em 28/08/2020 às 00:14Atualizado em 18/12/2022 às 09:03
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As pequenas coisas compõem a partitura da vida. Há acontecimentos memoráveis, esporadicamente, algumas raras comemorações espetaculares, mas o encanto da vida está nos pequenos detalhes, fatos pontuais que carregamos inconscientemente nas nossas lembranças.

Por exempl a primeira boneca, que eu amei à primeira vista. A minha era morena e a da minha irmã, loira. Tenho um retrato, na área íntima de minha casa, onde cada qual com a sua boneca, exibe um sorriso que desnuda por inteiro nosso encantamento.

Pequenas coisas, como meu primeiro livro, “A Fada Cacetinha”, que me emocionou do princípio ao fim, com o clássico - “E viveram felizes para sempre...”. Depois dele veio “Reinações de Narizinho”, de Monteiro Lobato, que me introduziu no mundo mágico da literatura. Os personagens de seus livros se tornaram parte da minha família.

Teve ainda a primeira comunhão, que a gente fazia sem saber exatamente do que se tratava, com medo de morder inadvertidamente a hóstia, corpo de Deus, e ela se transmutar em sangue na minha boca. Usei uma veste especial longa, com aplicações de símbolos religiosos, e carreguei nas mãos uma vela, símbolo de iluminação interior, num suporte que tinha o formato de um barquinho. Tive que fazer uma longa preparação para o grande dia. Tirei até retrato no estúdio do fotógrafo. Um luxo só! No catecismo tinha o desenho de um triângulo contendo dentro um grande olho, encimado pelos dizeres: “Deus tudo vê”. Eu tinha muito medo daquele olhar. Ficava repensando as travessuras do dia, tremendo de medo do castigo divino. Evitava sempre aquela página.

Ah! E o primeiro amor platônico? Aquele que nos faz suspirar, idealizar, sofrer e exercitar nossa fantasia. Que delícia! Quanta emoção!

A primeira bicicleta. A dificuldade de aprender a me equilibrar nela. Meu irmão, impaciente, segurava a bicicleta e logo retirava o apoio poucos metros à frente. Ao descobrir que estava sem o seu apoio eu entrava em desespero, e logo me desequilibrava e caía. Chorava, e muito. Aprendia, pouco a pouco, no sofrimento, nas escoriações, nas quedas. Como se aprende tudo na vida. Porém jamais me esqueci da sensação de vitória e de autoconfiança quando consegui finalmente andar de bicicleta.

Pequenas e significativas coisas como o meu primeiro piano, da marca “Sonderklang”, presente do meu saudoso pai. Recordar as emoções vividas na primeira audição, que aconteceu no auditório do Colégio Santa Marcelina de Belo Horizonte, quando eu toquei a “Valsa do Contentamento”, de G. Martin, aos seis anos de idade. O salão fervilhava de familiares das alunas que participavam da audição. Lembro-me até do gracioso vestidinho de laise cor-de-rosa, com manguinhas bufantes. Meus pés não alcançavam o chão e ficavam suspensos, levando-me a sentir, pela falta de apoio, uma terrível insegurança que comprometia minha concentração e me levava a tremer de nervoso. Digamos que foi uma estreia auspiciosa.

O primeiro baile, quando eu já residia em Uberaba. Nesse dia, senti-me uma verdadeira rainha envergando um lindo vestido longo, ao lado de minha saudosa prima, Rosa Maria.

As pequeninas coisas importam e muito. A idade chega e a gente nem vê o tempo passar. À noite, enquanto o sono não chega, essas reminiscências me vêm à mente. Elas jamais foram esquecidas. Apenas ficaram adormecidas, hibernando, esperando a hora de vir à tona, ressignificando esses momentos tão especiais. Acredito que vale a pena viver, mesmo sabendo que já não há muito mais o que viver. Nada é tão insignificante que não mereça ser lembrado. Aí, temos certeza de que a felicidade nos visitou inúmeras vezes.

A escritora Ecléa Bosi escreveu em seu livro “Velhos amigos”: “As histórias de vida estão povoadas de coisas perdidas que se daria tudo para encontrar; elas sustentam nossa identidade, perdê-las é perder um pedaço da alma”. 

Olga Maria Frange de Oliveira Professora de piano, regente do Coral Artístico Uberabense, autora do livro “Pioneiros da História da Música em Uberaba” e ex-Diretora Geral da Fundação Cultural de Uberaba

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