Uma casa não é só uma casa. Uma casa agrega pessoas, acumula sonhos, tristezas...
Uma casa não é só uma casa. Uma casa agrega pessoas, acumula sonhos, tristezas e alegrias. Torna-se para nós um reduto de aconchego. Oásis em meio às intempéries.
O poeta e cronista Fabricio Carpinejar disse com muito acert Morre-se por uma casa, para pagar uma casa, para merecer uma casa. Uma casa pode ser agradável quando silenciosa, assim como quando entramos num templo vazio e nos sentimos mais próximos de Deus e o ressoar dos nossos passos nos dá a sensação de que seremos atendidos “em particular”... num agradável colóquio entre nós e o Criador. Uma casa tem que contar com quadros herdados, que atravessam gerações, como testemunhas oculares de segredos inconfessáveis; com objetos familiares que não sabemos mais de onde vieram, pois foram acumulados ao longo de uma vida, trazidos de viagens que a memória apagou. Uma casa não pode permanecer arrumada, como se estivesse à venda, deve haver total identidade do proprietário com cada ambiente. Uma casa depende de alguma desordem. As coisas que deixamos espalhadas pelos locais que acolhem nossa intimidade nos dão uma sensação de aconchego.
Uma casa tem de mostrar infiltrações de vez em quando, sofrer gripe, chorar pelas paredes. Ela envelhece junto com os donos. Surgem manchas na pintura, rachaduras nas paredes, janelas emperradas pelo tempo, ferrugem nas torneiras e corrediças, limo nas pedras e muros do jardim. Uma casa não é uma casa sem as histórias de seus antigos moradores, sem os temores e as incertezas desses moradores.
Minha mãe e eu mudamos para um novo apartamento no início da década de 1980. Era o primeiro imóvel próprio, pois meu falecido pai dizia que “casa própria é capital empatado”. Sempre morávamos em casas alugadas. Minha mãe, enfim, era proprietária de um imóvel novinho em folha, de três quartos, localizado no centro da cidade. Parecia um sonho! Meus dois irmãos foram morar fora de Uberaba, e meu querido pai falecera em 1973. Lembro-me, como se fosse hoje, o trabalho para acomodarmos todos os pertences nos armários, os quadros nas paredes, os móveis nos devidos lugares e ... achar um lugar para o meu piano. Ficamos exaustas, mas felizes. Era um recomeço, uma nova etapa de vida. Olga mãe e Olga filha para o que der e vier.
Permanecemos juntas até 2003, quando mudei para uma casa que construí sozinha durante cinco longos anos. Queria um espaço que pudesse chamar de meu. Fui mudando devagarzinho, pouco a pouco, para não ocasionar sequelas.
Ia visitá-la todos os dias. Nos últimos oito anos ela já não se locomovia mais e as visitas duravam horas. No dia 31 de março de 2017 ela foi ao encontro de seu amado esposo.
Meus irmãos e eu resolvemos, de comum acordo, reformar o apartamento. Ficou uma beleza! Mas, quando abro os olhos nesse apartamento totalmente reformado, a claridade agride meus olhos após a instalação de ampla e moderna janela de vidro. Tão diferente da penumbra em que vivia mergulhada nos dias passados! O piso claro de porcelanato nada tem a ver com o carpete marrom que cobria toda a área social e íntima do apartamento. Os armários sofisticados da cozinha se chocam com a lembrança do singelo armário amarelo de fórmica que combinava com o fogão e a geladeira, presentes de meu inesquecível irmão. Aí eu penso... “Será que minha mãe ‘passeou’ por aqui e ficou triste com as mudanças que realizamos com tão boa intenção?” A resposta do eco é a nossa própria pergunta. Começo a ter saudades de tud da longa escadaria, com mais de 30 degraus, que subi e desci infinitas vezes; da atmosfera familiar, com todas as suas expressões de vida; dos parentes assistindo às nossas conversas detrás de vidros, com seus sorrisos imutáveis nos porta-retratos.
Saudades das sombras no teto do quarto, desenhadas pela luz do abajur; do leve farfalhar da cortina agitada pelo pequeno ventilador apoiado na penteadeira; do estalar da madeira dos belos e solenes móveis da sala de jantar, em jacarandá maciço, ricamente entalhados; dos passos que não mais viriam; do relógio de pêndulo na parede da sala, sempre parado, como se também ele estivesse cansado pelo peso dos anos, pois fora herança da minha avó materna. Paulo Coelho disse em um de seus livros que “até um relógio parado consegue marcar a hora certa duas vezes ao dia”. Refleti muito nessa frase, pois ela mexeu comigo. Tive saudade da penumbra desse apartamento, cujas janelas permaneciam sempre cerradas “para não entrar poeira” e desejei olhar novamente os objetos decorativos dispostos em perfeita ordem... inalteráveis. E a quantidade de espelhos? Um em cada cômodo, de todos os tamanhos. Na sala, nos quartos e nos banheiros. Minha mãe tinha um sempre à mão... para se recompor... para se procurar... para se encontrar.
Vem-me à memória uma frase que li num livro que folheei há pouco temp “Uma casa falece numa reforma”. Como eu entendi o significado dessa frase! Foi como se levasse uma punhalada no peito.
Talvez consiga esquecer o impacto desta frase lembrando-me de um pensamento mais poético e consolador do poeta baiano Antonio Torres: “Uma casa ainda não é uma casa se não desapareceu secretamente na gente”. Aquele imóvel permanece vivo nas minhas entranhas, congelado nas minhas recônditas lembranças. Permanecerá vivo nas minhas recordações dos dias inolvidáveis que compartilhei com minha mãe. As memórias felizes são a prova de que nada de verdade perdemos, pois continuam aqui, porque ficaram em nós.
Lya Luft definiu com apurada sensibilidade as mesmas inquietações quando escreveu: “Os que amei e morreram vivem na medida das minhas lembranças: como se eu fosse um espelho vivo. Nada do que houve se destruiu, tudo está em mim para que eu preserve o que quiser preservar”. A memória é a guardiã da vida.
(*) Pianista, professora, maestrina, regente do Coral Artístico Uberabense, pesquisadora da História da Música em Uberaba, ex-diretora-geral da Fundação Cultural de Uberaba