Meu querido pai, Eudóxio de Oliveira, era um homem alto, de 1,84 metro, bem-apessoado e vaidoso. Ele gostava de usar ternos de linho, sapatos de cromo alemão, gravatas de seda importadas e chapéu panamá. Na década de 1950, fez parte da lista dos dez homens mais elegantes de Uberaba, na coluna social do jornal Lavoura e Comércio. De origem humilde, cursou só as duas primeiras séries do curso primário. Inteligente, era bastante politizado e lia todos os jornais mais importantes em todos os níveis: municipal, estadual e federal. Quando eu cursava a Faculdade de Direito na Fiube (Faculdades Integradas de Uberaba), todas as minhas dúvidas em Direito Comercial era meu pai quem me explicava. Muitas vezes, eu o surpreendia lendo atentamente meus livros da faculdade. Ele sempre dizia que a maior herança que deixaria para seus filhos seria um diploma de curso superior. Meu irmão, Eudóxio de Oliveira Júnior, tornou-se médico pela segunda turma da Faculdade de Medicina da Universidade Federal de Uberlândia; eu, bacharelei-me em Direito pela Fiube e graduei-me em piano pela Faculdade de Artes da Universidade Federal de Uberlândia, e minha irmã, Mirtes, cursou História Natural na Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras São Thomaz de Aquino (Fista). Este curso hoje é conhecido como Biomedicina. Há cerca de vinte anos, minha irmã tornou-se tradutora de obras do inglês para o português, especializando-se na área médica. Portanto, meu pai cumpriu à risca sua promessa.
Para meu pai, um homem com “H” maiúsculo teria que ser independente, ninguém haveria de mandar nele. Seguindo sua intuição e exercendo sua liberdade de escolha, decidiu sozinho os caminhos que iria trilhar na sua vida profissional. Essa liberdade, no entanto, cobrava um alto preço. Faltava-lhe o capital para investir em seus projetos, sempre alicerçados em empréstimos bancários com juros muito altos. Lembro-me, como se fosse hoje, de uma viagem que a família fazia de Belo Horizonte para Uberaba. Várias vezes, avistávamos anúncios dos “Pneus Firestone” em outdoors localizados em meio à paisagem acentuadamente verde no entorno da rodovia. Em dado momento, meu pai me disse: – Filhinha, está vendo aquele anúncio? Fui procurado, tempos atrás, por gente desta empresa americana com uma proposta de trabalho. Queriam que eu me tornasse um de seus representantes no Brasil. – E aí pai, o senhor aceitou o convite? – Claro que não, já cansei de falar que não trabalho para os outros. – Mas... pai!!? – Só os fracos precisam de patrão, filha. Não é o meu caso.
Ele tinha muitos amigos. Conquistava as pessoas com sua simpatia e cordialidade. Grande parte de sua vida transcorreu nas estradas do interior de Minas e São Paulo. Seu trabalho exigia constantes viagens de negócios e, dessa forma, estabeleceu uma vasta rede de contatos. Era o que minha saudosa mãe chamava de “aventureiro”, por ser dotado de uma natureza extraordinariamente tenaz, ambiciosa e até mesmo ousada. Tinha a teimosia dos que, não sendo previdentes para enxergar a dificuldade, não veem obstáculos à sua frente. Segundo ele, “a fortuna pode bater à nossa porta a qualquer momento”. Por isso, jogou na loteria a vida inteira, mas nunca ganhou nada. Minha mãe policiava para ele “não jogar dinheiro fora”. Meu pai jurava de pé junto que não tinha comprado nenhuma tirinha, mas, quando ele entrava para o banho, minha mãe descobria uma tira enorme dentro do bolso do seu paletó. Era um caso perdido!!! Ele dizia à sua roda de amigos que, se ganhasse na loteria um dia, o prêmio não cobriria o que ele tinha gasto nas apostas.
Era muito bom para opinar nos negócios dos seus amigos e cunhados. Ninguém se aventurava em algum negócio de risco sem consultar o Eudóxio. Seus conselhos eram preciosos e bem-vindos.
Por não ter diploma, exerceu um sem-número de atividades, entre elas: negociante de diversos tipos de mercadorias, atacadista, comerciante, dono de armazém, peixaria, ferro-velho, atuava no negócio de compra e venda de carros, empresário no ramo do transporte urbano. Chegou a ser o maior fornecedor de grãos do Triângulo Mineiro no final dos anos 40. No fim da vida, tornou-se proprietário de uma pequena empresa de ônibus municipal em Frutal e Iturama. Os ônibus não eram novos, mas “davam para o gasto”, dizia ele. Lembro-me de que ele chegava em casa nos finais de semana reclamando do número de passageiros, que diminuía a cada dia. Segundo ele, a Prefeitura tinha contratado um trenzinho da Coca-Cola para alegrar as crianças no mês de outubro. Aí, não deu outra, o trenzinho passava apinhado de gente, e os ônibus, com meia dúzia de gatos pingados. Um prejuízo incalculável! Logo, perguntei: – E aí, pai, o que o senhor fez? – Ora, filha, eu também fui passear no trenzinho para ver por que ele fazia tanto sucesso? Sabe que era mesmo uma gostosura? Ele falava com seu bom-humor de sempre, encontrando o lado divertido nas situações mais adversas. Quando seus negócios iam mal, ele transformava suas derrotas em aprendizado para um novo projeto, pois, aquele sim seria infalível. Analisava seus infortúnios, transformando-os em anedotas. No final, ríamos com ele, e não dele.
De repente, descobri que eu nunca disse a meu pai o quanto eu o admirava. E o quanto a minha vida buscava espelhar-se na sua para pacificar meu coração pelos diálogos que não chegamos a ter. Ele partiu muito cedo, aos 53 anos, vítima de um acidente numa rodovia no estado de Santa Catarina, próximo à cidade de Mafra. Nem chegou a comemorar suas bodas de prata!
Na nossa casa, tivemos tempos de fartura e outros extremamente difíceis. Mas, indiferentes a tudo, trocávamos risos, afetos, sonhos, histórias, e vivíamos doces momentos de intimidade familiar. Com essa infância tão preenchida, nunca me considerei carente de nada. Eudóxio de Oliveira era um homem amoroso e sonhador. Tudo que dependia da sua autorização era “pago” em beijos. – Filhas, levo vocês para passear em troca de 50 beijos. Nem mais, nem menos! Estou esperando... Hoje sei que meu pai e minha mãe eram apenas gente como a gente. Fizeram o que sabiam, o que podiam fazer por nós. Deram o seu melhor!
Onde o senhor está agora, pai? Sou-lhe tão grata, sinto tanta saudade... Você foi para mim um exemplo de paciência, perseverança, teimosia e tenacidade incansável. Descobri que o amor paterno é o amor da dádiva e da entrega. O pai sempre deseja que os filhos não passem por nenhuma das dificuldades pelas quais ele passou na vida. E luta para que isso aconteça. O poeta João Doederlein foi muito feliz ao dizer que “Pai é quem nasceu de novo vendo a gente nascer”. Pena que só na maturidade conseguimos compreender a grandiosidade desse amor desmedido. A bênção, meu pai, e feliz Dia dos Pais!!!
Olga Maria Frange de Oliveira
Autora do livro “Pioneiros da História da Música em Uberaba”, ocupa a cadeira nº 15 da Academia de Letras do Triângulo Mineiro