A cada dia que passa, um amigo meu fica mais convencido de que deve resgatar um velho instrumento para ajudar na sua lida diária, para enfrentar os desafios da vida moderna: a lupa, a velha lente de aumento. E ele tem bons argumentos.
Acreditar só na boa-fé dos fabricantes e dos comerciantes já não basta, segundo ele, para se comprar algo nessa vida. Não que não tenham senso de honestidade e respeito à lei, mas isso não significa que se deve deixar apenas por conta deles aquilo que nos diz respeito. E ele fala com uma imperceptível ironia, quase deixando escorrer, bem no cano da boca, um filete de veneno. Que maldade a minha ao descrevê-lo assim!
Uma questão que o preocupa, presente até nos seus antigos apontamentos antropológicos, refere-se ao péssimo costume de que os direitos somente serão devidamente considerados se alguém reclamar. Se ninguém reclamar, fica como está. Neste mundo encantado, onde as aparências valem mais do que a cruel realidade, vende-se gato por lebre, chuchu por goiaba, papel colorido por dinheiro e até ilusões por felicidade. Até que alguém reclame... E ele não tem razão?
Queixa-se o amigo que, ao dedicar-se às compras, está sempre em apuros. Imagine, me diz ele, que percorrer longas prateleiras tornou-se um martírio. Antes de tudo, decidir-se ante a imensa variedade de produtos, às infinitas cores das embalagens, aos constantes apelos ao consum compra, compra, compra... É de enlouquecer, principalmente para um sujeito susceptível, como ele, de bom coração, prenhe de bondade humana. Como não acreditar que o óleo X não lhe fará mal algum? Como não aceitar o fato de que o biscoito da embalagem colorida não irá significar a realização de seus sonhos mais impossíveis? Como recusar o produto que lhe trará a felicidade num piscar de olhos? O que se vê na hora de passar pelo caixa não é nada bom: sempre gasta mais do que o planejado e os desejos não se realizam. A bronca da esposa é inevitável. Corre o risco, além da desmoralização iminente, de ela não permitir que o pobre coitado volte sozinho às compras.
Ele me garantiu, então, que irá conferir os ingredientes, verificará minuciosamente no pacote das bolachas, aquele que promete a conexão com as estrelas, a existência de tal substância na fórmula, etc. De quebra, passará a verificar a data de validade, o teor de sódio, o tipo de adoçante, a gordura saturada e outros quesitos tão relevantes quanto o sucesso na vida, a beleza eterna, os cabelos sedosos, o cheirinho sedutor. Mas quem disse que ele consegue ler as informações relevantes nas embalagens? Só consegue distinguir as letras grandes, as figuras bonitas, as promessas mirabolantes.
Então, se algum dia encontrarem um sujeito perdido em meio às prateleiras de uma grande loja, observando com uma lupa as embalagens, eu lhes garanto, é o meu amigo. Tenham paciência, é ele tentando decifrar as menores palavras já escritas numa embalagem em todo o mundo. De quebra, deve estar procurando a felicidade.