ARTICULISTAS

A taubinha

Renato Muniz Barretto de Carvalho
Publicado em 28/03/2022 às 20:26Atualizado em 18/12/2022 às 23:22
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Ah, as palavras! Tão simples e tão complexas, dependendo do que fazemos com elas, de quem as utiliza. O que fazer? Endeusar, engessar, ignorar, modificar, estudar… Eu prefiro brincar, prefiro rir, sonhar, descobrir novos significados e usos. Prefiro guardá-las na algibeira, ou será no alforje, no embornal, no bolso? Quando precisar de uma, eu pego e escrevo, falo, grito, sussurro.

Será que alguém ainda sabe o que é um embornal? Melhor guardar na pochete. Pochete? Por acaso, os lexicógrafos já registraram esta palavra? Meu computador não reconhece. Se não está registrada, não pode? Mas está lá, nos dicionários: substantivo feminino, veio do francês “pochette”, perdeu um “t” e foi aportuguesada. Hoje, está nas cinturas, servindo para guardar dinheiro, documentos, bugigangas, além dos meus medos, que não os quero esparramados por aí. Alguns a consideram brega, fora de moda, mas eu gosto e sigo usando, o objeto e a palavra.

Na minha infância, eu gostava de prestar atenção nas conversas dos adultos, com o consentimento deles, é claro! Eu queria aprender muitas coisas, saber das novidades do mundo, conhecer palavras diferentes, até inventar algumas. Na fazenda do meu avô, convivíamos com uma realidade diferente daquela com a qual estávamos acostumados na cidade. Outra cultura, outros hábitos e palavras desconhecidas para mim. O que me deixava admirado eram as pronúncias, as gírias, os sons. Eu ficava curioso com os sotaques, com a articulação do texto, com a espontaneidade da fala.

Jovem inexperiente, abarrotado de ignorâncias, principiante quanto ao vocabulário e inábil com os códigos, eu enxergava erros, imperfeições, falhas. Mas o equivocado ali era eu. Mais tarde, reconheci os preconceitos e iniciei um longo caminho de superação. Quanto mais eu tentava compreender a multiplicidade da linguagem, mais eu ficava maravilhado, mais eu percebia sua riqueza. Um mundo fantástico. Depois, veio o tempo das leituras, das descobertas literárias, da fantasia e da vontade de mudar o mundo.

Tem coisas que a gente pega depressa; outras demandam mais tempo. Adolescentes são afobados, quase tudo relacionado a essa fase é urgente, é cachoeira, e não remanso. O exercício da paciência deveria fazer parte do currículo escolar. Com impaciência, passamos por cima de muita coisa, pulamos etapas, escalamos a montanha sem ter aproveitado a planície. Nesse processo, muitas palavras ficam pra trás, sentimentos são menosprezados, perdem-se conceitos, ganha a intolerância. Eu segui incorporando palavras.

Minha tristeza foi quando, um dia, encontrei uma taubinha – para quem não sabe: “tábua pequena” – e não pude usar. Muito comum no meio rural e presente até na música popular, simpática. Mas não constava dos dicionários. Logo apareceu alguém desaprovando o uso, até topei com um termo incomum: metátese. Negaram, assim como hoje pretendem impedir expressões capazes de incorporar a diversidade humana, promover maior inclusão. Com autoritarismo, querem congelar algo que não se controla: a língua. Será medo do futuro?

Renato Muniz B. Carvalho

 

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