A saracura é uma avezinha redondinha, coberta de penas escuras, amarronzadas, às vezes em tons esverdeados. Tem pernas finas e compridas, bico fino e forte, mas o que melhor a caracteriza é o seu canto típico, reconhecível de longe. Onde eu moro, elas costumam cantar ao amanhecer ou ao anoitecer. Durante o dia ficam quietas. Quando ouço uma delas cantar, tenho receio de estar ouvindo seu canto pela última vez.
Diversas razões me inquietam e reforçam essa ideia. Uma delas refere-se à eliminação rápida e progressiva da vegetação que ainda resiste na maioria das cidades brasileiras. Cada vez mais, diminuem as áreas verdes, muitas árvores, mesmo as exóticas, são derrubadas inapelavelmente, ao mesmo tempo em que avançam os prédios e as áreas cimentadas ou asfaltadas. Apesar do discurso de valorização dos jardins e dos parques, o que se vê é descuido e redução, agravando a degradação urbana.
Algumas aves conseguem resistir à expansão urbana e, se os predadores não estão presentes, suas chances de sobrevivência aumentam. A disponibilidade de comida, na verdade de restos de alimentos e de insetos, aumenta sua capacidade de adaptação a um ambiente hostil. Não se sabe por quanto tempo e nem quais os efeitos disso no organismo da fauna nativa, agora habitantes da urbe.
Uma solução seria a criação e a manutenção de mais parques, de mais e maiores jardins públicos. Esta não parece ser a prioridade dos gestores públicos, apesar dos clamores e de tudo o que já se sabe a respeito de sua importância para a saúde humana e para o bem estar de todos os grupos, em especial o das crianças e o dos idosos. Alguns itens da flora se recuperam mais facilmente, sua manutenção é mais fácil, às vezes basta uma boa chuva. A fauna sofre mais, é mais suscetível aos impactos da urbanização, depende de espaço para locomoção, para reprodução e de alimentos apropriados.
Em muitos casos, vários animais estão presentes, mas as condições para reprodução não são adequadas, há o isolamento, não existe biodiversidade suficiente para resistência a pragas e doenças, daí o decréscimo populacional. Para algumas espécies, o fim é irreversível.
Pior é quando os próprios moradores se mobilizam contra a vida animal, quando realizam uma seleção no sentido contrário ao da biodiversidade. Alimentam pombos, sujam a cidade e estimulam a proliferação de ratos, não toleram o som de aves da fauna nativa, como o da saracura, não aceitam as ciclovias e, para as folhas que caem, pedem o corte sumário das árvores. Irritam-se com o som dos pássaros e não se incomodam com o barulho constante e agressivo dos automóveis e das motos, não protestam contra os carros de som e buzinam por qualquer motivo. Com o passar do tempo teremos uma sociedade de pessoas insensíveis e o último canto da saracura mal será percebido. Tomara que, no futuro, muitos ainda consigam ouvi-las. E que 2015 venha com mais sons de aves do que de automóveis.