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Banguela

Renato Muniz
Publicado em 01/09/2025 às 19:19
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Nos anos 1970, fiz algumas viagens à cidade de São Paulo com meu avô paterno. Ele dirigia um fusca bege, com para-choques cromados, e eu, com 11, 12 anos de idade, orgulhoso, ia ao seu lado, no banco do passageiro. Às vezes, ia no banco de trás, quando minha avó estava com a gente. Naquele tempo, a rodovia tinha pistas simples. Meu avô gostava de conversar sobre as cidades pelas quais passávamos. Parece que ele as conhecia de perto, por dentro.

Costumávamos parar duas ou três vezes durante a viagem, sendo uma dessas paradas num restaurante da estrada, para almoçar. Eu achava curioso o motivo alegado por ele para justificar a escolha da parada: a quantidade de caminhões estacionados no local. Segundo ele, se ali estavam muitos caminhões, isso significava que tinha comida boa e barata. Caminhoneiros têm bom paladar e não desperdiçam dinheiro, ele dizia. Durante muito tempo, em minhas próprias viagens, sempre me recordava dessa sua argumentação.

O fusca era parcimonioso, mas, para meu padrão de exigência, era confortável. Meu avô dirigia compenetrado, nunca o vi cochilando ou exagerando na velocidade e, mesmo se quisesse, o carrinho não conseguiria ir muito rápido. Nas descidas, ele não colocava o câmbio em “ponto morto”, isto é, não soltava as marchas, prática comum adotada por vários motoristas naqueles tempos. Diziam que economizava combustível, e a palavra “mágica” para meu avô era “economizar”.

Hoje, essa é uma prática condenada, perigosa e inútil. Pouca gente, provavelmente desinformada, usa desse expediente para economizar combustível. Em termos mecânicos, e é bom esclarecer que não sou especialista nisso, essa ação neutraliza os “dentes” das engrenagens, como se não existissem os tais dentes, e o veículo desliza “livre” pela pista, ou com menor resistência. Daí, a referência ao termo “banguela”, palavra que a nossa língua portuguesa incorporou, vinda com os africanos que para o Brasil foram traficados nos tempos terríveis da escravidão colonial.

Dizíamos, na época, que o carro “descia na banguela”. Só muito tempo depois é que percebi tratar-se de um mito. Aliás, a indevida consideração dos mitos é perigosa em várias circunstâncias. O receio do meu avô era olhar no espelho retrovisor e ver que um pesado caminhão se aproximava em alta velocidade; se ele não desse passagem, era acidente na certa. Era necessário acelerar ou sair da pista, senão corria-se o risco de o caminhão passar por cima do fusquinha, literalmente. Um pavor.

Às vezes, eu me pego pensando nisso, imaginando as “banguelas” a que estamos expostos na política e na vida social. Um “caminhão desgovernado” pode afetar a democracia, causar mortes, provocar ferimentos, prejuízos, declínio nos índices de leitura de livros, retrocessos culturais e ambientais. Por desinformação, vaidade, ganância, irresponsabilidade, sei lá, vira e mexe somos ameaçados por veículos descontrolados, com “motoristas” inconsequentes que os deixam descer na banguela, com nefastas consequências, comprometendo nosso bem-estar e o futuro.

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