Posso ser considerado um sujeito privilegiado, pois na minha casa, durante a infância e adolescência, nos anos 1960 e 1970, havia uma biblioteca razoável, em tamanho e em diversidade. Era um conjunto caracterizado por assuntos variados. Tinha obras de literatura brasileira, latino-americana, norte-americana e europeia. E tinha livros de filosofia, história, teatro, sociologia e direito. Livros de todo tipo: alguns novos e outros comprados em sebos, diversas coleções, enciclopédias e dicionários. Os volumes estavam organizados segundo uma lógica pessoal, dos meus pais, sem rigor científico ou catalográfico.
Nós tínhamos pleno acesso aos livros, mas, com o tempo, meu pai ficou mais rigoroso com os empréstimos. Ele tinha seus motivos. Eu mesmo, com minha displicência típica de adolescente, fui responsável pelo extravio de mais de um volume. Uma das baixas foi um volume de uma enciclopédia que levei para o ginásio, para fazer um trabalho escolar, e nunca mais voltou para a estante, sumiu, escafedeu-se. Imaginem a chateação do meu pai. Aquela perda nunca me saiu da cabeça. Muitos anos depois é que consegui comprar o volume extraviado, num site da internet, e repor na biblioteca. Vem dessa época a aquisição, pelo meu pai, de um pratinho com os seguintes dizeres: “Libro prestado, perdido, estropiado”, que ele pendurou na parede. O recado estava dado.
É preciso reconhecer que a maioria das crianças brasileiras não tem o privilégio de contar com uma biblioteca em casa, por pequena que seja. A situação social é muito desigual no país, as políticas públicas, quando existem, são acabrunhadas e instáveis; enfim, carências diversas dificultam e impedem o atendimento das necessidades educacionais mais elementares. Se a população nem sempre tem condições de adquirir o básico, o que dizer de livros, jornais e revistas, cinema, teatro, apresentações musicais e viagens?
Livros são essenciais para a aprendizagem e formação cidadã, mas a gente sabe que vai ser difícil, tão cedo, que todas as residências tenham bibliotecas à disposição das crianças. Então, há uma questão urgente para resolver: enquanto país, que se deseja moderno, inclusivo e democrático, responsabilizarmo-nos pela existência e manutenção de bibliotecas públicas em todos os municípios brasileiros e em cada escola. Esta deveria ser uma providência indispensável para garantir que as desigualdades socioeconômicas não afastem crianças de suas necessidades fundamentais de aprendizado e lazer.
Sem livros, sem leitura, sem educação de qualidade, sem apoio às artes, ficamos reféns do passado, do conservadorismo e da ignorância. Livros não bastam por si só, mas sua ausência torna tudo mais complicado. Afinal, a leitura é uma ferramenta fundamental para o entendimento da vida. Muitos sabem disso porque cresceram frequentando bibliotecas, públicas e privadas. Apesar de nem sempre ser ideal, a educação, combinada com a leitura e com as artes em todos os espaços possíveis, é fundamental para a compreensão do mundo e para a formação de uma visão crítica da realidade.
Para mais informações, ver a Lei Castilho (Lei n.º 13.696, de 12/07/2018).
Renato Muniz B. Carvalho