Tem cheiro de fumaça, tem cor de fumaça, tem gosto de fumaça, então é fumaça, e onde tem fumaça tem fogo, já dizia o povo da roça nos séculos passados. Vamos todos respirar fumaça e, daqui a pouco, ficaremos parecidos com um queijo defumado, um frango assado, um espetinho queimado. Agosto, mês do desgosto, mês de empinar pipas, mês de surpresas na política e de continuar negando as mudanças climáticas. Resta aguardar a chegada da primavera. Que venham as chuvas! Enquanto elas não vêm, vamos nos esconder dentro de casa, fechar as janelas, maldizer o vento e enfiar o rosto nas redes sociais e na televisão.
Uma das cidades do estado de São Paulo mais atingidas pelos incêndios de agosto é Urupês. Triste ironia. Urupês já foi chamada de Mundo Novo; sua origem remonta à procura pelas terras férteis na região; parte de sua economia está ligada à produção agrícola. Nos incêndios deste mês, pelo menos duas pessoas morreram e o município está sendo considerado um dos mais afetados pelos focos de incêndio no estado.
Foi em 1918, há mais de cem anos, que o escritor Monteiro Lobato escreveu e publicou o livro “Urupês”, reunindo quatorze contos. Um deles ficou famoso pela presença de uma das personagens mais controversas da literatura brasileira: o Jeca Tatu. Na época, Lobato tocava a fazenda que recebeu como herança de seu avô. Atormentado por sucessivas secas e inúmeras queimadas, o autor publica o artigo “Velha praga”, no jornal O Estado de S. Paulo, indignado com os hábitos dos trabalhadores rurais, reclama da sua falta de higiene e da preocupação restrita à sobrevivência. Lobato critica duramente a cultura local, refletindo um olhar conservador ligado à aristocracia rural. Representante da elite, o autor extravasa sua indignação sem fazer a crítica social e antropológica. Anos depois, ele revisita essa postura, reconhecendo seus julgamentos e “pedindo desculpas” ao Jeca Tatu. Aqui, nem de perto ele lembra o genial criador de outra personagem ícone de sua obra: a boneca Emília. O que diria Emília? Sempre afiada, não pouparia palavras para criticar as queimadas, denunciando interesses escusos, suspeitos. Com sua sagacidade, ela nos alertaria para o risco de parte do Brasil se transformar em um deserto.
O que une o livro “Urupês” e o município paulista, além da coincidência do nome? As queimadas, o descuido com o meio ambiente, o descaso com a saúde e o bem-estar da população. Considerem-se ainda a ausência de crítica e a omissão de autoridades, que só costumam tomar atitudes — quando tomam — quando os céus estão sufocados por fumaça no inverno ou os rios invadem as cidades no verão, trazendo prejuízos devastadores. É um cenário revelador da forma como parte da sociedade brasileira maltrata seu território e seu povo. E revela o descrédito com as políticas públicas, substituídas pelo veredito: “falta de consciência”, essa desculpa esfarrapada.
Renato Muniz B. Carvalho