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Dificuldades à mesa

Renato Muniz
Publicado em 17/11/2025 às 18:17
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Não venha me dizer que você nunca se atrapalhou com um pedaço de frango na hora do almoço. Quantas vezes você pelejou com o garfo? Quantas vezes quase deixou cair na toalha ou no chão até agarrar com a mão e morder com vontade uma bela porção? Arrependeu-se? Ficou acanhado? Sujou a mão irremediavelmente? No máximo, olhou em volta para ver a reação dos demais e percebeu alguém te observando discretamente. Fazer o quê? Já era.

Depois de limpar as mãos em quatro ou cinco guardanapos, que ficaram esfarelados e gordurosos, prometeu se matricular num cursinho de etiqueta, mas nunca levou essa decisão adiante. Aliás, esses cursinhos ainda existem? Quem nunca pensou em se tornar vegano ou decidiu só comer frango em casa por conta das dificuldades com um ossinho indiscreto?

Lembro-me de uma ocasião em que, após inúmeras tentativas, o pedaço contra o qual eu lutava voou até o meio da mesa e ali ficou, imóvel, indiscreto, acusador. Era como se sorrisse pra mim, desafiando, irônico, dizendo: “comigo não!”. Negar a autoria do desastre e ocultar a origem da coxinha era impossível. Pedi desculpas e retornei a comida rebelde ao meu prato, nessa altura todo borrado devido aos esforços feitos para enquadrar a comida e encaminhá-la à minha boca.

Eu precisava mostrar ao mundo quem mandava naquele prato, naquela coxinha de frango. Por diversas vezes, posicionei — desajeitadamente, é claro — garfo e faca em tentativas inúteis de usar simultaneamente as mãos direita e esquerda, de forma concatenada, para separar um naco apenas, um que coubesse na minha boca e eu pudesse mastigar sem dar vexame maior. Por que ninguém nunca nos disse, na infância, que essa seria uma das maiores dificuldades com a qual iríamos nos deparar no mundo dos adultos? Por que nunca me matricularam numa disciplina escolar que me ensinasse a usar garfo e faca adequadamente sem passar vergonha? Ao invés disso, ficam nos ensinando trigonometria…

Pensei muito no assunto, sem esquecer que muita gente, inclusive crianças, sequer têm arroz, feijão ou farofa suficiente para se alimentar de forma digna. E eu preocupado em usar garfo e faca sem humilhação! O mundo envolvido em guerras e eu enrolado com uma coxinha — faça-me o favor! Eu aqui, pensando nessas veleidades, em obedecer a regras à mesa, e os magnatas da indústria armamentista discorrendo sobre a fabricação de fuzis que expelem mais projéteis por segundo. Drones que matam sem culpa. Ora essa! Eu preocupado com o frango sujando de gordura minha camisa nova e os investidores bolando estratégias para lucrar mais na bolsa de valores. Que despropósito!

É preciso superar a timidez com os talheres, sem pudor nem intimidação, sem medo de reprimendas. Temos de arrumar coragem e, mesmo diante da etiqueta e do constrangimento alheio, seguir em frente — porque há coisas muito mais indigestas do que um frango escorregadio.

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