ARTICULISTAS

Ela sabe o caminho

Não tem coisa melhor do que uma tarde chuvosa para atualizar a prosa e, de quebra, ouvir...

Renato Muniz Barretto de Carvalho
Publicado em 14/08/2016 às 11:35Atualizado em 16/12/2022 às 17:44
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Não tem coisa melhor do que uma tarde chuvosa para atualizar a prosa e, de quebra, ouvir e contar boas histórias. Assim foi, certa vez, na fazenda do meu avô. Caiu uma chuva tão forte que o jeito foi todos pararem o que estavam fazendo e se abrigarem sob o telhado acolhedor da cocheira. Choveu bastante e a enxurrada grossa desceu com vontade do alto dos morros. Uma enxurrada escura por conta do solo desfeito, dos torrões desagregados e da lama carregada de terra, folhas e galhos. A umidade era tanta que já não adiantava pensar em fazer mais nada naquele restinho de tarde. Os animais que estavam nos currais foram soltos e apenas alguns cavalos permaneceram arreados, porque os cavaleiros responsáveis por eles precisavam voltar para casa.

A chuva, que começou por volta de quatro horas da tarde, não deu trégua. O entardecer veio rápido e a água não parou de pingar das calhas do telhado. Nós percebemos que o Bastiãozinho ficou incomodado, não desgrudava o olhar o horizonte, bastante ansioso.

À medida que escurecia lá fora, a prosa escasseava ali dentro. Aos poucos, cada um foi se despedindo e saindo para enfrentar a chuva fria. Uns moravam mais perto e saíram a pé mesmo, correndo pra ver se não se molhavam além do necessário. Outros saíam resignados, sem pressa, sabendo que chegariam encharcados em casa; só um bom banho quente e a beira do fogão de lenha para esquentar.

Por último, ficamos o Bastiãozinho, o Miguel, responsável por fechar os bezerros até a próxima ordenha, o Sr. Antônio, que morava na sede, onde cuidava da horta e do jardim, e eu, interessado nas conversas e nos causos. Com exceção do primeiro, os outros dois moravam ali pertinho.

No início da chuva, a mulinha alazã do Bastiãozinho tratou logo de se abrigar sob o beiral do telhado da cocheira e por lá ficou, esquecida, conformada. Ela é que o levaria pra casa, que ficava mais distante, pra lá da curva do Córrego da Capivara. Mas o fato é que ele estava inquieto, amuado. Tirava o canivete da bainha, afinava um graveto, cutucava as unhas e olhava com tristeza o anoitecer. Podia ser chateação com a chuva, com o serviço, por causa de algum ressentimento, que ele não nos contou, como podia ser também um aborrecimento qualquer. Pensei que o problema dele era sair com a mulinha no escuro, escorregar no barro, passar no corguinho cheio... Percebendo nossa preocupação, o Bastiãozinho finalmente desabafou: a Dona Auristela não estava em casa, tinha ido à cidade para uma consulta, e recomendou que ele recolhesse a roupa no varal antes de sair, mas ele esqueceu. Ia receber uma bela bronca. E quanto à mulinha e a volta pra casa? Aí ele se virou, animado, e disse: “Uai, ela sabe o caminho, de cor e salteado!”.

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