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Fios e tramoias

Renato Muniz Barretto de Carvalho
Publicado em 16/08/2022 às 21:52Atualizado em 18/12/2022 às 18:06
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Meu velho conhecido, o Zecantônio, estava aborrecido quando o encontrei na terça-feira passada. Tínhamos combinado de fazer uma caminhada na avenida. Ele estava aborrecido — talvez esta não fosse a melhor palavra —, chateado, indignado, preocupado, apavorado. Escolha a palavra que se amarra melhor ao que vou contar a seguir.

Estávamos caminhando, seguindo recomendações dos entendidos em vida saudável, desses que andam por aí nas redes sociais e em outros recantos virtuais, quando, de repente, ele parou, olhou pra cima, como se estivesse vendo um objeto estranho no céu, e falou um palavrão. É óbvio que não vou repetir o que ele disse, não pega bem e pode encabular alguns leitores deste texto. Ele se mostrava irritado e tive de interromper a marcha para saber qual era o problema.

“Qual é o problema?!”. Falou tão alto que eu fingi que não era comigo. “O problema é a quantidade absurda de fios nas ruas da cidade”, e desfiou — com o perdão do trocadilho — um rosário de reclamações, de queixas, algumas muito razoáveis. Visivelmente transtornado, foi buscar argumentos no baú das memórias, levantou coisas do arco da velha, com todo respeito às senhoras maduras da nossa sociedade. Enfim, disse que era inadmissível a existência de tantos fios nos postes da cidade. Pareciam cipós e outras “pragas” típicas de matas degradadas.

Sim, os fios podiam ser considerados uma verdadeira praga urbana, tanto quanto ratos e pombos, pior que alguns inconvenientes candidatos a cargos políticos na época das eleições, mais nocivo que cocô de cachorro, bituca de cigarro e outros objetos recalcitrantes.

Bastante alterado, falou: “A fiação aumenta dia a dia, estão procriando feito coelho, hoje é um fio, amanhã são dois e no fim da semana são milhares”. Pediu que eu reparasse, nas esquinas e nas ruas, na existência diária de funcionários trepados em escadas, mexendo nos postes, interrompendo o trânsito, emendando fios, trocando cabos e, o mais grave, deixando pontas soltas, abandonando fios inservíveis lá onde apenas eles alcançam. “O cidadão comum não tem ideia do que acontece no alto de um poste. É um mistério! E se estiverem pensando em espionar alguém? Coitados dos que rastejam nas calçadas!”.

Eu não sabia mais onde estava o limite entre razão e paranoia na pobre cabeça do meu conhecido. Ele tinha bons argumentos, sabia das coisas, mas estava transtornado. Disse que “os caras” já controlavam inúmeros processos e tinham desenvolvido mecanismos de domínio das pessoas, seus deslocamentos, seus hábitos. Tudo estava arranjado, pronto para interferir na comunicação entre os cidadãos, nos desejos, nos nossos comportamentos de compra, embaralhando decisões, criando conexões invisíveis e perniciosas entre nós e as máquinas. Faltava ligar os fios.

Fiquei apavorado. E se ele tivesse razão? E a poluição visual? E o meio ambiente? Por que tantos fios? O Zecantônio está com medo de, num dia desses, acordar amarrado.

Renato Muniz B. Carvalho

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