Alguns poucos talvez ainda se lembrem, mas a maioria só de ouvir contar ou nem isso. Refiro-me à maneira como o leite era distribuído há cinquenta anos: de carroça, de porta em porta. Na minha memória, a carroça descia a rua e logo a freguesia sabia que o leite estava chegando. Era transportado a granel, num tanque de metal, com torneirinha. O carroceiro vestia avental branco, todo solene e prestativo. Quando estava nas redondezas de casa, minha mãe saía com os frascos de vidro de um litro, colocava debaixo da torneira e esperava encher. Lembro-me que sempre existia a preocupação em deixar os frascos limpos, à espera do dia seguinte.
Um dia, provavelmente no fim dos anos 1960, o leite passou a ser vendido em armazéns, em padarias, e as carroças foram aposentadas. Por um tempo, os recipientes continuaram a ser de vidro, que deviam ser reaproveitados, depois vieram os saquinhos plásticos e, hoje, as embalagens do tipo longa vida. O “leite de saquinho” resistiu, imbatível, mas já está dando sinais de decadência. Dizem que, no interiorzão, ainda se vende leite direto do latão, de porta em porta. As normas sanitárias não recomendam, mas…
O fornecimento de leite ao consumidor, e o de outros produtos também, mudou muito nesse período. Palavras como “logística”, “varejo”, “atacado”, “engenharia de distribuição” etc. não são apenas moda passageira. Vivemos o reino do consumo, do descartável, tudo se transforma em mercadoria, tudo deve ser colocado à disposição do público no menor tempo possível, gerando, inclusive, muitos resíduos. Os fluxos se intensificaram com reflexos na quantidade e na qualidade das mercadorias. Do leite ao lixo, percebe-se a preocupação de serem atendidas as expectativas do consumidor, assim como a rápida eliminação da “sujeira”, do esgoto doméstico à casca da banana.
A globalização, a difusão da informática e as facilidades da comunicação trouxeram alterações profundas na convivência social e nos padrões de consumo. As cidades se modernizaram e intensificaram-se as conexões, mas falta diálogo entre os atores sociais, faltam estímulo à participação política e maior compromisso com a saúde da população. Um grave risco é a terceirização das decisões, como se disséssemos: “Você decide por mim e nem quero saber o que foi decidido!”. É isso que queremos?
Fico pensando na reação da minha mãe se descobrisse que o leite estava contaminado. Daria uma vassourada no carroceiro? Puxaria a orelha dele? Ora, foi para melhorar a qualidade que o leite deixou de ser distribuído daquela maneira. Hoje, mecanismos de controle, acesso à informação e pesquisa científica garantem melhor qualidade dos alimentos, mesmo diante de complexas redes de produção e distribuição. Descuidar de questões como alimentação segura, democratização do consumo e saúde universal é abrir mão de conquistas históricas; significa voltar a um passado bem anterior ao tempo das carroças de leite!