Eu estava no banco, aguardando ser atendido, atento ao painel que indicava o andamento das senhas, quando um sujeito se sentou ao meu lado. Era lugar reservado a idosos. Olhei para o indivíduo e achei que ele não se enquadrava como idoso, mas eu não estava a fim de reclamar. Conformei-me à minha insignificância. Contudo, ele precisava conversar com alguém, falar da sua sublime estirpe, da sua posição de destaque, dizer que não era um reles mortal aguardando atendimento no caixa.
Incomodado, inquieto, mexeu-se na poltrona, consultou papéis no bolso, arrumou o cabelo, virou-se para mim e disse: “Qual é a sua senha?”, falou baixinho, como se quisesse saber um segredo, intimidades, tipo desvendar uma fofoca. Não era a senha do meu cartão de crédito, mas a senha do atendimento. Eu disse o número. Ao perceber que eu seria atendido antes, ele pediu para trocarmos de senha. Achei um abuso e fiz de conta que não escutei a indecência proferida. Ele insistiu: “preciso ser atendido na sua frente ou vou me atrasar para um compromisso”. Ora, eu já esperava fazia um tempo, morava longe, voltaria de ônibus – que chatice! Não adiantou eu fazer cara feia, o fulano me deu uma verdadeira lição de genealogia, mais ou menos assim:
“Quem você pensa que eu sou? Vou te explicar por que mereço ser atendido antes. Não preciso agradar a ninguém, não vou me desgastar para ressaltar minha importância, e digo mais: será uma honra para você me escutar. Tenho quinhentos anos à sua frente, venho de vitórias em guerras e conquistas. Meus descendentes vão receber polpudas heranças. Consideram-me antipático, mas estudei nas melhores escolas, tenho vários diplomas, sou um cidadão respeitado, faço caridade, minha família é da nobreza, sou tataraneto dos primeiros homens brancos que pisaram neste território, sou bisneto de grandes benfeitores, desbravadores de regiões incultas, repletas de vícios e de maleitas, sou bisneto do homem mais influente que já pisou essas ruas, meus antepassados foram políticos influentes, logradouros públicos os honram com seus nomes, meus parentes ergueram várias cidades. Tenho muito orgulho do meu pedigree, somos personagens de epopeias, meu sobrenome consta dos livros de história, minha família é proprietária de vasta extensão de terras, exportamos a riqueza produzida aqui para vários países e, se não fosse por nós, tudo isso não passaria de mato inútil. Você vai me ceder seu lugar na fila!”
Nem tudo acontece conforme desejamos. O painel da senha piscou, era minha vez. Virei-me e olhei para o infeliz, calculando seu pesado fardo. Sem hesitar, levantei-me e achei melhor não falar nada. Dirigi-me ao guichê, impressionado com tamanha arrogância. Quem ele pensava ser, Dom Manuel, o Venturoso? Para mim, mais parecia o bispo Sardinha, aquele que foi devorado por indígenas em 1663 após naufragar na costa brasileira – era pessoa tão importante…
Renato Muniz B. Carvalho