ARTICULISTAS

Leitura no ônibus

Sem saber o que eu ia fazer da vida, quando menos esperava comecei a dar aulas

Renato Muniz Barretto de Carvalho
Publicado em 25/03/2018 às 12:51Atualizado em 16/12/2022 às 05:18
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Sem saber o que eu ia fazer da vida, quando menos esperava comecei a dar aulas. O ano era 1976, eu nem tinha entrado na faculdade, era apenas um garoto tentando terminar o Colegial, sem muita noção das coisas. Mas aceitei colaborar num projeto para alfabetização de adultos.

Nos anos 1970, a ditadura militar, certamente pressionada pela comunidade externa, devido ao alto índice de analfabetismo no país, criou um programa de alfabetização sob a responsabilidade do Mobral. A meta era audaciosa e impossível de ser cumprida: em dez anos, os burocratas pretendiam erradicar o analfabetismo no Brasil. O programa acabou em 1985. Autoritário e baseado em princípios pedagógicos equivocados, terminou sem deixar saudades nem situação diferente da que existia quando começou.

Antes que se crie alguma confusão, quero deixar claro que nunca dei aulas no Mobral. Aliás, “mobral”, naquele tempo, tinha uma conotação bastante pejorativa. Por motivos que não cabe aqui explicar, alguns amigos resolveram assumir núcleos de alfabetização na Grande São Paulo, exercendo um papel que o governo não tinha interesse de executar. Trabalhávamos com o Método Paulo Freire, sem poder dizer, líamos e discutíamos intensamente seus livros e suas ideias. Um dia, eu conto melhor essa história.

Minha pequena e admirável sala de aula ficava numa várzea úmida da Zona Leste da capital, em Guaianazes. O trajeto até lá demorava cerca de duas horas, de ônibus. Logo compreendi que a melhor opção, para ir sentado, e não espremido, era pegar o ônibus no ponto final, no Parque Dom Pedro, pertinho da Praça da Sé. Como as aulas iniciavam-se às 19h, antes das 17h eu já estava no ponto. Foi uma época de muita aprendizagem e leituras.

Eu lia no ônibus, sentado nos últimos bancos, tentando me concentrar nas histórias, sem me incomodar com os buracos das ruas, as paradas constantes, embora atento aos passageiros e aos arredores. Li vários livros do Graciliano Ramos, do Mário de Andrade, que eu pegava emprestado na Biblioteca Circulante, e, também, algumas obras essenciais da literatura latino-americana.

Nessa época, chegaram-me às mãos alguns livrinhos que me impressionaram bastante e me ajudaram a definir caminhos: “A mãe e o filho da mãe”, “O Menino e o Pinto do Menino” e “Os rios morrem de sede”. Seu autor era o mineiro Wander Piroli (1931-2006). O entusiasmo foi grande, mudou meu foco, ali estava uma literatura social contundente, cheia de ironias e de aflições. Eu carregava os livros numa velha bolsa de lona, como verdadeiros tesouros, ansioso por terminar cada conto antes do próximo solavanco do ônibus, e suspeitava que os personagens dos contos fossem meus companheiros de viagem. Essas leituras e esses trajetos foram minha “alfabetização” no mundo do trabalho, da periferia, da política, da busca pela dignidade humana. Às vezes, dá uma vontade danada de entrar num ônibus e de ler um livro até o ponto final.

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