ARTICULISTAS

Meu bisavô e seus livros

Renato Muniz Barretto de Carvalho
Publicado em 14/08/2023 às 18:48
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Eu não conheci meu bisavô materno — o Joãozinho —, só a fama, as histórias e seus livros. Nascido em 1877, casou-se com minha bisavó, de origem suíça, em 1902. Tiveram cinco filhos. Morreu em 1956. Documentos familiares antigos indicam que, nas reuniões que faziam em sua casa, se ouvia muita música e se discutia literatura e “até filosofia”. Foi um eterno estudante: estudou farmácia, odontologia, medicina, jornalismo, tentou seguir carreira como professor e como político, sem sucesso.

Minha bisavó foi professora primária por 32 anos até se aposentar e, pelo que conta minha mãe, foi ela que segurou a barra pesada nos anos difíceis das décadas de 1920 a 1950. Conheceram instabilidades de todo tipo: distúrbios políticos, privações, revoluções (1930, 1932), a Segunda Guerra e sucessivas mudanças de cidade, tendo morado nos estados de São Paulo, Paraná, Goiás e Mato Grosso. Na “Revolução Constitucionalista” de 1932, meu bisavô lutou na divisa de Minas Gerais com São Paulo. No fim da vida, eles se mudaram para a capital paulista, indo morar no bairro do Cambuci. Numa carta de 1934, que escreveu a um amigo, ele afirmou: “Lutei muito, sofri muito e aprendi a avaliar as dores alheias”.

Devido a circunstâncias familiares, herdei alguns de seus livros, cerca de noventa volumes. Creio que sua biblioteca não passasse muito desse número, o que era significativo para sua época, ainda mais se considerarmos as várias mudanças que fez ao longo de sua vida. Um aspecto de sua trajetória que me chama a atenção é seu gosto literário.

Seus autores prediletos eram os portugueses, principalmente o Alexandre Herculano, mas também lia Spencer, Tolstói, Virgílio, Ovídio, Montesquieu, entre outros. Quanto aos autores brasileiros, lia Alfredo Ellis, Afrânio Peixoto e Fernando de Azevedo. E quando eu digo que ele lia é porque seu costume era anotar comentários no próprio livro, compulsivamente, às vezes anotação sobre anotação, como se estivesse discutindo a obra com o próprio autor, concordando ou discordando, reunindo provas e trazendo novos argumentos ao “debate”.

Hoje, olho para seus livros, abro, folheio e tento imaginar suas angústias, seus ideais, suas dúvidas, enfim, as demandas de seu tempo. Quais as razões de suas escolhas, o que pensava da vida, da política, da família, do trabalho? Até que ponto seus livros o influenciaram? O que pensava das ideias de Herbert Spencer e de Tolstói? Pensadores tão diferentes, um liberal, defensor do positivismo, e o outro um anarquista, o genial autor de Guerra e Paz. Num livro sobre a inquisição em Portugal, de Herculano, ele deixou anotado: “não houve, como nos dias da inquisição, crimes tão monstruosos!”.

O que importa é perceber que os livros mostram diversos caminhos, prioridades e nos ajudam a construir uma ética. Com os livros, dialogamos com o mundo e uns com os outros. Daí o medo que os livros provocam em algumas pessoas.

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