Lá em casa, aos domingos, era dia de macarronada. Também era o único dia em que tínhamos permissão para beber refrigerante. Para minha mãe, não era fácil. Com os filhos e o marido em casa, de modo geral ela ficava esgotada no fim do dia. Meu pai, logo cedo, dirigia-se à sala, que também era a sua biblioteca, e colocava música em alto volume. Já estávamos acostumados, mas eu nunca soube o que os vizinhos achavam desse costume.
Quando acordávamos, já sabíamos que meu pai estava a postos diante da vitrola. Se me recordo, era só música clássica, ou erudita, como ele gostava de dizer. Os seus preferidos eram os compositores russos: Prokofiev, Stravinsky, Shostakovitch, Rimsky-Korsakov, Tchaikovski, entre outros. Eu suspeitava, porém, que ele tinha uma admiração especial pelo Senhor Ludwig van Beethoven, como nós gostávamos de chamar o genial compositor germânico. De todas as sinfonias, a Nona era a mais tocada, mais de uma vez. Em seguida, vinha a Quinta Sinfonia. Quando cessava a música, meu pai estava exausto, como se fosse ele o regente. Era bonito e intrigante observar sua expressão corporal, seu rosto, sua concentração. O melhor de tudo era ver seu contentamento quando nos via ali perto, compartilhando o som. A atividade durava a manhã toda, até minha mãe vir nos chamar dizendo que a mesa estava posta para o almoço. Pronto, a sessão musical estava encerrada; outra, só no próximo domingo.
Não me recordo quanto tempo durou nossa “formação musical erudita”. Um dia, acabou. Mozart, Bach, Chopin, Vivaldi, Brahms, Debussy, Villa-Lobos, Mahler e tantos outros ficaram adormecidos na memória até o fim da adolescência. Por que acabou? Sumiu muita coisa. Nós crescemos e nos mudamos, fomos estudar em São Paulo, e os domingos musicais nunca mais aconteceram.
Meu pai não era músico e tinha gosto eclético. Juro para vocês: até de rock and roll ele aprendeu a gostar. Para alguém nascido nas primeiras décadas do século XX, isso era admirável. Ouvia conosco, atento e interessado, os discos do Led Zeppelin, dos Rolling Stones, do Pink Floyd, etc. Um dia, ele me fez um convite surpreendente: ir assistir com ele ao filme Let It Be, dos Beatles. Era o filme que marcava o fim dos Beatles. Saímos pensativos do cinema.
Não foram apenas os domingos que se tornaram silenciosos. Os discos só voltaram anos depois, na forma de coleções vendidas em bancas de jornal. Junto com os discos, sumiram também livros, jornais e revistas. Tudo atirado num rio nos anos duros da década de 1960. Lembro-me da Kombi parada no meio da ponte, do olhar tristonho da minha mãe e dele despejando o material na correnteza. Nunca falou sobre o fato. Anos depois, ao comentar uma das sinfonias de Beethoven comigo, ele disse algo assim: “ouvir esta música é um ato de liberdade e de resistência”.
Renato Muniz B. Carvalho