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O empréstimo

Comi tanto no jantar que acordei passando mal. Não era a quantidade, mas a qualidade: muita gordura

Renato Muniz Barretto de Carvalho
Publicado em 28/01/2018 às 12:17Atualizado em 16/12/2022 às 06:50
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Comi tanto no jantar que acordei passando mal. Não era a quantidade, mas a qualidade: muita gordura, temperos duvidosos, higiene péssima... O resultado desagradável foi ter perdido a primeira aula da manhã. Como ainda tinha uma chance de evitar levar falta e de não arruinar meu dia por completo, vesti o uniforme, calcei os sapatos, saí apressado e corri até o colégio, com dor de barriga e sem nada no estômago.

Duas aulas chatas e, no intervalo, a Daniela me olhou desconfiada e deu o veredito certeir “Você comeu alguma comida estragada!” Estava tão na cara assim? Pedi socorr “O que eu faço?” A recomendação veio rápida: “Passe na cantina e peça iogurte, pão com queijo quente e tomate”. Salvou minha manhã! Na saída, eu estava agradecido a ela, já pensando no almoç batatas fritas, feijoada, doce de leite e sei lá mais o quê. Pura imprudência!

Ela deve ter percebido que eu era um caso perdido e mudou logo de assunt “Já leu João Antônio?” Ah, ela se referia ao livro de contos “Malagueta, Perus e Bacanaço”, excelente obra desse autor genial, livro publicado em 1963, mas uma raridade desde o lançamento. Diziam que não era leitura bem vista pelos conservadores de plantão, pelos guardiões da moral e dos bons costumes, seja lá o que isso significasse; hipócritas, isso sim! Era literatura de primeira qualidade, jogo duro, adversidades, malandragem, jogos de bilhar e amor nas quebradas da madrugada paulista. Era um desses livros que não se discutia na escola, mas nos barzinhos, nas saídas das últimas seções de cinema, nas sextas-feiras de muita pizza, apaixonadamente.

Como assíduo frequentador de sebos, eu tinha comprado um exemplar em bom estado de conservação e devorado em seguida. Ela foi direta: “Me empresta?” Ih! Se há uma coisa que eu nunca gostei foi de emprestar livros. Como eu estava agradecido pela sugestão do lanche, não tinha como recusar: “Amanhã, trago pra você”.

Não abusei da comida, fiz um breve lanche à tarde e coloquei na bolsa o João Antônio, pesaroso porque ia emprestá-lo. Que seja! A Daniela era uma boa amiga, já me salvara em outras ocasiões, mas fiz-lhe severas recomendações: “não suje a capa, não engordure as páginas, não dobre, não durma em cima dele...”. Se eu fosse tão cuidadoso com minha alimentação como era com os meus livros, não teria problemas estomacais. Nunca mais me devolveu. Anos depois, comprei outro. A Daniela sumiu, o ano letivo terminou e jamais nos encontramos novamente. Onde andará? Quanto à minha alimentação, tornei-me mais exigente, quanto à literatura e aos livros, continuo guloso.

Observaçã João Antônio Ferreira Filho (1937 – 1996) era jornalista e destacou-se como escritor de contos que retratavam o subúrbio e a periferia. É considerado o criador do “conto-reportagem” no jornalismo brasileiro.

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