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O relógio

Renato Muniz B. Carvalho
Publicado em 25/11/2024 às 18:34
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Na casa dos meus avós paternos havia um relógio antigo. O mecanismo ficava embutido num elegante abrigo de madeira, com tampa de vidro no visor e dois ponteiros de metal com detalhes em baixo-relevo. O mais interessante, conforme minha memória guardou, era o som das badaladas, algo inesquecível e nunca mais ouvido depois que o relógio se foi; deve ter sido inspirado numa melodia antiga, quase música. A peça poderia servir de cenário em romances históricos de séculos passados, do tempo em que a vida andava mais devagar, em que o cotidiano transcorria no compasso do pêndulo, com regularidade, escondendo contradições, medos e obscurantismos, embora com ternura, gentileza e discreta afinação. Para completar, o icônico objeto tinha uma chave para dar corda e fazer os ponteiros se movimentarem; se alguém se esquecia, o mecanismo parava, causando atrasos e constrangimentos.

Havia dois dispositivos envolvidos e conectados no funcionamento do relógio: o das horas e o das badaladas. O ritmo dos ponteiros tinha de estar integrado com os avisos sonoros das horas cheias. Se estivéssemos atentos ao redor, ao mundo à nossa volta, saberíamos do andamento do dia ou da noite pela quantidade de batidas, que horas eram: uma, duas, três e assim por diante. Um ciclo completo a cada dia, se nada de extraordinário acontecesse. E raramente acontecia, mas a humanidade nunca conseguiu controlar o tempo de acordo com sua vontade. Talvez, tenha tentado acelerar ou retardar, em alguns casos fatídicos; controlar, jamais conseguiu.

Quando meus avós morreram, ninguém se lembrou de dar corda no relógio e ele ficou vários dias parado. Foi como se tivessem desligado o mundo. Fiquei sem saber se era apenas um instante, algo passageiro, ou se aquela situação iria perdurar por toda a eternidade. Ingenuidade minha, de adolescente inexperiente, logo tudo retornaria ao seu ritmo, ao seu sincronismo dialético. A história, qualquer que seja o significado que atribuímos a esse conceito, não para e muito menos depende da nossa vontade individual. Já o coletivo, os grandes movimentos de massa, sociais, políticos e culturais, aí é outra coisa.

Meu problema com o relógio, quando eu ia dormir na casa dos meus avós, era perder o sono e ficar esperando a próxima badalada. Ficar ligado à sequência das batidas era inevitável. Quatro horas, quatro e meia, cinco horas… A madrugada avançava e o sono não vinha. Dava vontade de levantar e interromper a jornada dos ponteiros. Seria algo como obstruir o tempo, bloquear o nascer de um novo dia. Me angustiava saber que estava amanhecendo e eu ainda acordado, contando batidas, aguardando a próxima e as demais, infindáveis. Dava medo.

Me sinto meio bobo tentando descrever o relógio dos meus avós, e fico nostálgico. Às vezes, percebo que o tempo passa rápido demais e certas coisas ficam pra trás. Pois é, o tempo passa. Complicado é quando ele nos ilude, nos confunde.

 Renato Muniz B. Carvalho

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