ARTICULISTAS

Observações sobre o empréstimo de livros

Renato Muniz Barretto de Carvalho
Publicado em 24/06/2021 às 20:26Atualizado em 18/12/2022 às 14:52
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Tem gente que empresta tudo o que tem, desde dinheiro até a própria escova de dente. Tem gente que não gosta de emprestar nada, seja caneta, óculos, carro, roupa, etc. Cada um com suas manias.

Outro dia, eu ouvia as lamentações do Zeca, um conhecido meu. Ele reclamava por conta de um livro que emprestou e não devolveram. Apesar dos insistentes pedidos, o fulano inventava mil desculpas e não devolvia. O Zeca estava indignado. O relapso lhe dizia que não tinha lido. Argumentava que leitura não é coisa que se faz com pressa; inventou que um primo o pegou e não o trouxe de volta; disse também que guardou num armário bem alto ou numa gaveta cheia de guardados, impossível de encontrar, e por aí afora. Talvez tenha levado para algum lugar e esqueceu. Ou caiu café nas páginas, o cachorro comeu a capa, mil conjecturas. Qualquer coisa para não devolver o livro. Um desaforo! Achei que o Zeca ia chorar.

“Atrevido! Sem-vergonha!”, estava zangado, a ponto de explodir. “Se fosse dinheiro, a bicicleta de 21 marchas ou a vara de pesca, tudo bem! Mas o livro de contos do Isaac Babel não! Por quê? Nem se fosse gibi ou revista velha. Imperdoável!”

Eu bem que tentei acalmar o amigo injuriado, mas ele estava inconformado. Piorou quando eu disse que era só comprar outro livro. Ficou mais nervoso, o pescoço inchou, as maçãs do rosto ficaram vermelhas; me preocupei com sua saúde. “Mas qual é o problema, Zeca?”, sim, eu ousei perguntar.

O problema, dizia ele, a voz baixa, com tristeza: “O problema é que o livro foi presente de uma amiga que se mudou para a Noruega”; e ele nem sabia se algum dia ela voltaria! Talvez não voltasse nunca mais. “Ah”, eu disse, “então a questão não é o livro, é a amiga?”. O Zeca irritou-se, sentiu-se ofendido, me chamou de incompetente e me inquiriu: “você não sabe separar as coisas, o joio do trigo, alhos de bugalhos, livros comprados de livros recebidos de presente?”, e prosseguiu, desfiando um rosário, defendeu tese, um verdadeiro tratado filosófico sobre empréstimo de livros. Eu estava disposto a encerrar o assunto, pensei em me despedir e ir fazer outra coisa.

Antes de ir embora, me lembrei dos últimos livros que eu emprestei. Um deles voltou sem a lombada, encadernado em espiral; a pessoa achou que tinha me feito um favor! Outro voltou com as páginas soltas, pois o “amigo” resolveu tirar cópias, arrebentou o livro, desmanchou a encadernação. Fiquei com vontade de uma dose de cachaça; tem coisas que a gente sente falta. O Zeca tinha razã livro emprestado tem suas próprias regras, seus protocolos. Será que o formato digital vai acabar com esses contratempos? Vai significar o fim do empréstimo de livros e seus dissabores? O assunto até nos fez esquecer da política.

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