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Pesadelos

Renato Muniz
Publicado em 18/08/2025 às 18:18
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Quem nunca teve um pesadelo que atire o primeiro travesseiro. Sonhos ruins, tormentos noturnos, agitação, sentimentos opressivos, aflições involuntárias, pensamentos negativos, enfim, distúrbios do sono acometem a maior parte, senão a totalidade, da humanidade, ainda mais nos dias atuais. Quem nunca? Meus pesadelos devem estar na média mundial. Existem estatísticas de pesadelos? Classificação por frequência, temática, duração, horário? Qualquer hora, vou investigar. São muitos os pesadelos, alguns recorrentes.

Moro no décimo andar de um prédio residencial, cercado por casinhas e seus quintais. Até pouco tempo, existiam alguns terrenos vazios, que o povo chamava de baldios. Não havia outro prédio nas proximidades. Devagarinho, eles foram aparecendo, subindo, ocupando espaço, tapando o sol, a lua, as estrelas, o horizonte. Um aqui, outro ali, outro mais distante e, pouco a pouco, foram sendo erguidos, imponentes, como quem não quer nada — a não ser o dinheiro dos fregueses. No início, todos eram modernosos, pujantes, a mais pura manifestação de progresso. Era o que os vizinhos comentavam. Que beleza! Segundo a opinião popular, trariam empregos para os mais pobres, estimulariam as vendas no varejo e no atacado, civilizariam as cidades. Como não se entusiasmar? Diziam que a verticalização só podia ser boa. Era ver para crer.

De fato, os prédios mudaram a cultura local. De um jeito e de outro. Quem teve condições comprou logo um espaço lá nas alturas (dos edifícios). Quem não teve começou a erguer muros em busca da privacidade perdida, protegendo o que ficou visível para todos, defendendo-se das mudanças incompreensíveis na vizinhança. Alguns dos meus piores pesadelos começaram nessa época.

Foi quando os vizinhos resolveram cimentar os quintais. Retiraram os gramados e derrubaram as poucas árvores existentes. Vingança ou senso estético deturpado? Quem sou eu para condenar alguém ou criticar escolhas urbanísticas? As tendências impermeabilizantes e edificantes não pararam mais. Olhando de cima, do décimo andar, a luminosidade aumentou, o verde sumiu, as aves desapareceram, a brisa agradável que soprava às tardes foi embora.

Antes, eu acordava e tinha prazer em abrir a janela e olhar o horizonte. Sim, eu era um privilegiado. Com a impermeabilização galopante, passei a negligenciar este costume tão inocente. Acordava e ia direto para o computador. Depois, passei a dormir com o celular do meu lado. Seria insegurança? Era o que me restava de vínculo com o mundo?

Um dia, resolvi abrir a janela e não reconheci mais o bairro. Tudo cimentado. A Terra tinha virado uma bola de cimento cravejada de torres de todo tipo e tamanho. No décimo andar eu me sentia esmagado, já não avistava nada, a não ser um mundo cinzento. Não tinha sobrado um parque, uma árvore sequer. Só podia ser um pesadelo. Como deixamos acontecer uma tragédia dessas? Eu era cúmplice, pois vi acontecer e não falei nada. Voltei pra cama, mas o travesseiro parecia um tijolo. Qualquer dia, falo dos outros pesadelos.

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