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Sinal vermelho

Renato Muniz
Publicado em 24/02/2025 às 19:23
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Foi no comecinho de 1975. Ele tinha acabado de entrar na faculdade e já trabalhava. Juntou um dinheirinho, tirou a carteira de motorista, enfrentou a burocracia e mandou ver. Resultado: carro novo na garagem. A primeira viagem foi ao litoral. Uma aventura. Depois, foi e voltou várias vezes.

O carrinho ficava mais parado nos estacionamentos do que circulava pelas ruas da cidade. Já naquela época, o trânsito não era fácil. Aliás, desde que surgiram os automóveis, o trânsito nas cidades só piorou. Difícil esperar coerência dos gestores quando o assunto são os deslocamentos da população pelas vias públicas. As ruas estão sempre cheias de carros, o modelo é insustentável. Alguém já disse que é uma loucura, porém estruturada para que alguns ganhem e outros percam. A maioria perde: a saúde, tempo, a vida.

Soluções técnicas impensáveis nos anos 1960 surgiram e foram colocadas em prática a partir do final do século XX: corredores exclusivos para ônibus, rodízio de placas, radares, carros de aplicativos, veículos menos poluentes e mais confortáveis, GPS, e por aí afora. Apesar de tudo isso, é ingenuidade achar que o trânsito melhorou.

Vendeu o primeiro carrinho depois de quase dez anos de uso. Ainda servia, nunca se envolveu em batida, todas as revisões em dia, bem-cuidado; quase gente, o carro. Vendeu e comprou outro. A vida seguiu seu rumo. Nesses cinquenta anos, não se lembra de quantos carros teve. Com uns foi feliz; com outros, só dor de cabeça. Parece romance, namoro de adolescentes, situações subjetivas, como uns querem nos convencer.

E onde foi parar o primeiro carro? Virou sucata? Ainda roda? Foi para o desmanche? Por que se preocupar com isso? Ora, fez parte da sua história pessoal, construíram relações indissociáveis, ainda que entre um ser humano e uma máquina. A vida se aproximou cada vez mais das máquinas e afastou as pessoas. É inacreditável, mas estimularam sentimentos, como saudades, compaixão e amor em relação a elas. As referências vão além das máquinas de datilografia ou das máquinas fotográficas, chegando aos carros. Eles se tornaram quase membros da família, têm cômodo exclusivo, tomam banho, vão ao médico. Vocês sabem do que estou falando. Como não se espantar ao constatar isso? Se indignar?

Um dia, passou a procurar o velho carrinho nas ruas, nas estradas, nos estacionamentos. Não admitia que um carrinho tão simpático, com quem compartilhou tantas alegrias, tenha sido levado a um ferro-velho. Recusou-se a imaginar as peças retalhadas, arrancadas, revendidas, prensadas: faróis, motor, rodas. Pensou em fazer uma busca na internet, nos órgãos públicos de trânsito, mas não sabia sequer o número da placa original. Que nostalgia era aquela? Depois de 50 anos, percebeu que não dava mais conta de andar a pé, por incapacidade motora e intelectual. Estava se transformando numa máquina. Sinal vermelho. Antes de o sinal abrir, saiu do carro e conseguiu chegar à calçada. Ufa!

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