Os livros nos fascinam, seja pelas ideias, pelas histórias que contam ou pelas vidas envolvidas, dos autores aos leitores. No passado, as pessoas perguntavam: “Qual livro marcou sua vida?”. Depois, os livros dividiram esse marco referencial com os filmes e as músicas. Hoje, dificilmente ouviremos alguém perguntar: “Qual vídeo da internet te marcou?” ou “qual postagem da rede social te marcou?”. Parece que o efêmero domina a vida atual e dificulta a presença de parâmetros rígidos.
Precisava avaliar melhor isso, mas, apreensivo, só consigo pensar nos últimos acontecimentos, que levaram o Brasil a mais um retrocesso, a mais uma interrupção em sua trajetória civilizatória. Preocupam-me os que tentam ressuscitar zumbis, fantasmas carcomidos e seu desejo insano, prenhe de preconceitos e desconhecimento, de bradar pela volta ao passado e gritar por intervenção militar. Sinto que, em algum momento, nos últimos 40 anos, a escola, a imprensa, as instituições culturais e o próprio governo falharam com essas pessoas, de forma grave, talvez irreversível. Não ouso sequer entrar na seara das patologias para tentar entender alguns comportamentos, ainda que fique curioso com o tal “fetiche pela farda”, a ânsia por um “pai herói”, um “salvador da pátria”. Prefiro as explicações econômicas, é melhor desvendar o que está oculto por manipulações e por manifestações ruidosas e incoerentes.
No intervalo das notícias que inundam o cenário atual, para aliviar a tensão recorro à literatura, e gostaria de sugerir uma leitura.
Trata-se do livro “Sombras de reis barbudos”, de José J. Veiga (1915-1999). Publicado em 1972, tornou-se um romance premiado, teve várias edições e foi recomendado como leitura básica em escolas. É uma obra arrebatadora, carregada de profundas inquietações, que assusta, mas faz pensar. Nisso reside seu encanto.
A história se passa numa cidadezinha do interior; o enredo se desenvolve a partir do momento em que uma companhia aí se instala. O segundo capítulo abre com uma frase simbólica do conjunt “É curioso como certas coisas vão acontecendo em volta da gente sem a gente perceber, e quando vê já estão aí, firmes e antigas”.
A companhia, como metáfora, cresce desproporcionalmente e, como “coisa”, passa a dominar a vida corriqueira, essa sim, humana, mesquinha, amorosa, ignorante e ao mesmo tempo frágil, envolta em desejos inconfessáveis e lindos sonhos. Ela interfere na vida dos moradores, oprime, produz delírios. Realismo mágico, de excelente qualidade!
Uma das minhas passagens favoritas acontece quando o narrador, um menino, após limpar a loja do pai, vê cair uma tempestade torrencial e permite a dois cavaleiros que tragam seus cavalos para dentro do estabelecimento. “Nisso, o que faz um dos cavalos? Ergue o rabo e despeja um monte de esterco fumegante no meio da loja. Vendo o exemplo, o outro faz o mesmo.” Ah, nossos tempos! Não vou contar mais para não atrapalhar a leitura e estragar o prazer que é ler uma boa história. Uma boa reflexão!
Renato Muniz B. Carvalho