Todos os dias eu acordo e vou verificar se tem alguma correspondência debaixo da porta da sala
Todos os dias eu acordo e vou verificar se tem alguma correspondência debaixo da porta da sala. É que tem certos hábitos que estão enraizados, tornaram-se costumes inocentes e não percebemos. Olhar se tem cartas debaixo da porta é um deles. Hoje, nem jornais recebo mais, leio todos na tela do celular ou do computador. Teve uma época em que a correspondência era abundante, diária, não importando se o tempo estava quente, seco ou se despencava uma chuva pesada. Nem que fosse um papelzinho à toa, o carteiro passava e deixava algo para eu abrir e ler. Eram jornais, revistas, panfletos, contas a pagar, avisos diversos, folhetos de propaganda e o que eu mais gostava: as cartas pessoais. Eu confess era bom verificar o que tinha chegado, existia sempre uma sensação de surpresa, de dúvida e de satisfação. Podia chegar algo que ninguém estava esperando, como uma boa notícia, um livro, um cartão-postal de alguém que, numa viagem distante, se lembrava de nós.
O fluxo era diário, semanal, mensal... Contas a pagar vinham todo mês, assim como extratos bancários. Revistas tinham certa periodicidade, folhetos de propaganda não tinham data fixa, às vezes entupiam o vão da porta, às vezes desapareciam por um período. No Natal, os cartões... Por ocasião das eleições, eram abundantes os panfletos com currículos, fotos, agradecimentos e realizações vazias. Muita coisa era indesejável, inútil, mas eu fazia questão de abrir tudo, nunca deixei uma correspondência sem atenção, mesmo que soubesse do que se tratava. Tínhamos um vizinho que se vangloriava de nunca abrir a própria correspondência, dizia que jogava direto no lixo. Minha desconfiança era de que ele não sabia ler direito, ou tinha dificuldade com interpretação de texto.
Como tudo muda, as cartas foram rareando, diminuindo até quase desaparecerem. A correspondência pessoal foi substituída pelo correio eletrônico ou pelas redes sociais. Se o processo tornou-se mais barato ou eficaz, não sei, mas ficou mais rápido, trouxe maior comodidade, facilitou deslocamentos. É claro que perdemos um tanto do inesperado e do prazer de passar a manhã de domingo folheando publicações com notícias do mundo, análises de conjuntura, a programação completa dos cinemas, lançamentos de livros, artigos literários, crítica de teatro, dicas de exposições de arte, além de boas histórias, poesias, contos...
O gosto que adquiri com a descoberta diária do que me aguardava debaixo da porta se estendeu pela leitura de romances epistolares e de livros com cartas trocadas entre escritores, políticos e pessoas diversas. Grandes escritores tiveram sua correspondência publicada: as cartas entre Monteiro Lobato e Godofredo Rangel, de Graciliano Ramos a Heloísa, de Joel Rufino a seu filho, enquanto o escritor esteve preso durante a ditadura militar, e tantos outros. E você, já escreveu ou recebeu uma carta de amor? Ah, não tem coisa mais arrebatadora do que uma carta de amor que chega de manhã cedinho!