Imagine um mundo onde não existissem livros. Era assim na fazenda do meu avô nos anos 1960. Não havia estantes nas casas, os moradores da fazenda e das redondezas não tinham livros, não conversavam sobre eles nem discutiam obras literárias. O rádio dominava os assuntos. Ligado desde cedo, a programação começava com música caipira, depois vinham as notícias, os avisos em geral, desde recados diversos até obituários, estes sempre com o mesmo texto enfeitado, solene, chamado de “aviso fúnebre”. Eu ficava assustado cada vez que ouvia um desses. Era comum o tirador de leite levar o radinho para o curral enquanto a vacada era ordenhada. Acredito que essa prática ainda seja costumeira em muitas propriedades rurais interiorzão afora.
Não que meu avô e meus pais não gostassem de livros. Na nossa casa na cidade, meus pais tinham uma biblioteca com mais de três mil volumes, à qual nós, os filhos, tínhamos livre acesso. Na fazenda do meu avô, nenhum exemplar para contar história.
O analfabetismo era preocupante naquele período, cerca de 40% dos jovens e adultos não sabiam ler ou escrever. Havia uma escola rural na fazenda, mas o funcionamento era precário, nem sempre a professora aparecia, e as ausências não eram culpa dela. A escola praticamente funcionava numa sala apenas, com todas as crianças reunidas numa única série. A evasão era grande, ora com muitos alunos, ora dois ou três. O país só se preocupou com isso pra valer após a redemocratização, em meados dos anos 1980.
A solução era levar os livros que queríamos ler quando íamos de férias para a fazenda. No nosso caso, faziam parte obrigatória do conteúdo da mochila dois ou três volumes. Às vezes, voltavam incólumes, noutras vezes eram lidos à exaustão. Gostávamos de romances, mas os livros de poesia também compareciam. Manuel Bandeira, Vinicius de Moraes, Jorge Amado, Érico Veríssimo, entre outros, eram os autores mais lidos. Um livro especial foi “Quarup”, de Antonio Callado, publicado em 1967, obra que influenciou muito a nossa visão sobre a questão indígena no Brasil, além de reflexões necessárias sobre a situação política daquele período.
Uma preocupação era não deixar os livros sujarem. Sabíamos da importância de lavar as mãos antes da leitura; mesmo assim, muitos volumes voltavam com manchas de terra. Tínhamos de dividir nossa atenção entre banhos de cachoeira, passeios a cavalo, lanches deliciosos preparados com quitandas caseiras e horários para leitura. À noite, acontecia de a luz não ser suficiente, o que nos atrapalhava um bocado.
Os obstáculos à leitura persistem, não só no meio rural, mas em inúmeros cantos do país. A televisão chegou com tudo nos lugares mais remotos e, embora não tenha substituído o rádio, não estimulou a leitura e não contribuiu para a difusão da literatura. As estantes estão presentes, mas continuam vazias de livros.
Renato Muniz B. Carvalho