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Voltar ao Desemboque

Eu sempre volto ao Desemboque, nos meus sonhos, nas minhas fantasias...

Renato Muniz Barretto de Carvalho
Publicado em 22/05/2016 às 10:55Atualizado em 16/12/2022 às 18:47
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Eu sempre volto ao Desemboque, nos meus sonhos, nas minhas fantasias e nos meus pesadelos. Em consonância com as minhas utopias, o lugarejo histórico, o núcleo inicial de povoamento do Triângulo Mineiro, sempre será a cura para meus medos, minhas desesperanças e minhas crises de identidade. No repuxo das memórias, o Desemboque sempre foi um lugar perdido no espaço e no tempo, sempre foi um não-lugar, emoldurando duas igrejas, um cruzeiro, algumas casinhas e uma curva do rio.

O Desemboque sempre será um pedaço de Minas Gerais, onde já não havia minas, nem ouro, nem colônia, só poeira, pedras brancas arredondadas, águas cristalinas e horizontes a perder de vista. Será sempre uma civilização em declínio, a perfeita tradução da decadência e da melancolia, seja lá o que acontecer com o que sobrou por lá, quaisquer que sejam as mudanças que fizerem, ou não, por aquelas bandas.

O que eu sei é que, depois da primeira vez, nunca mais voltei. Talvez tenha ido mais vezes. Parece que foram tantas! Nas outras ocasiões em que lá estive não era mais o Desemboque, era a aventura adolescente, a arquitetura, a antropologia, a literatura, e, aí, já não tinha mais tanta graça.

Nas minhas memórias, o Desemboque será sempre o vazio, a vastidão do chapadão, das duas igrejas coloniais anacrônicas, isoladas, icônicas, posicionadas numa suave colina, escondendo o barranco pecaminoso do Rio das Velhas. Uma de costas para a outra, guardando o devido respeito, reforçando as dissonâncias do poder, da opressão, a nos lembrar da secular dominação, a nos advertir, e aos habitantes do passado e do futuro, que estamos, para toda a eternidade, amém, condenados à inevitável desigualdade social. Que sempre seremos divididos em classes superiores e inferiores, mas que a terra há de engolir a todos. Tanto é que alguns, os escolhidos pela fortuna, os que se julgavam os bons, estão enterrados lá, à sombra da igreja matriz de Nossa Senhora do Desterro. Um cemitério curioso, um jardim de almas deslembradas, onde meu pai e eu procuramos um dia, ávidos de passado e de referências, nossos antepassados. Estaria ali nosso futuro? Por isso, eu sempre volto ao Desemboque, para verificar se algum sobrevivente do século XVIII ainda está por lá e me possa fazer alguma revelação.

Eis que, de repente, montado num cavalo, surgirá um velho barbudo, de chapéu e capa Ideal, saído de um capão de mato, que nos mostrará onde está escondido o ouro nunca encontrado pela Coroa, e nunca saberemos se foi faiscado ali ou se era contrabandeado. No fim da tarde, irão embora, o velho e seu séquito de mulheres com lenços na cabeça, jovens marcados por terríveis doenças mentais e crianças com olhares desperdiçados. Ali estará o Desemboque, onde eu não voltarei mais, a não ser em sonhos, e deixarei vagar o olhar até não conseguir alcançar mais qualquer lucidez.

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