Àquele tempo, entre os meninos, ter uma bola de couro, chamada bola de “capotão”, era algo raro. Tricampeão mundial, a meninada do Brasil mais e mais se dedicava ao futebol, inspirada por Pelé e sua equipe. Alcançar a fama, glória e riqueza por esse meio era a inspiração geral. No Natal, a avó presenteou seus dois netos. Uma bola de couro para cada um. Um dos meninos logo levou sua bola para a lida. Improvisou com os amigos um campinho de futebol e, dia e noite, usufruíam da estimada bola. O outro neto, menino recatado, guardou cuidadosamente o seu especial presente sob sua cama. Embora gostasse de participar das brincadeiras com a bola do irmão, na sua bola ninguém tocava. O seu cuidado representava, ao seu sentir, também um modo de valorizar o presente. Todavia, a primeira bola estava sendo ralada, furou uma vez, duas, três vezes. Descosturou um gomo. No entanto, a turma sempre dava um jeito com o sapateiro do bairro para recuperar a sofrida bola e para que voltasse a atender à sua finalidade, nutrir a alegria e felicidade da criançada. Até que chegou a ocasião em que o sapateiro disse não haver mais jeito de reparar a bola. Todos, muito decepcionados, se lembraram da outra bola resguardada. Aquela que repousava inerte debaixo da cama. Então, sob pressão geral, quase exigência, o irmão aceitou ceder a bola para substituir a outra irremediavelmente danificada. Afinal, ele mesmo tinha se beneficiado bastante desta. Solenemente, como o salvador, foi buscar a sua bola. Tentaram encher de ar a bexiga toda murcha. Qual não foi a surpresa. Para a frustração de todos, não houve êxito. Estava inteiramente ressecada, irrecuperável. A desilusão foi total. Não deixaram de recriminar o ato do “pão duro”, como classificaram o dono da bola guardada. Contudo, a lição a todos serviu. Afinal, convenhamos, o mundo também é uma bola. Viva seu mundo, sua vida, seu prazer. Brinque com sua bola! A escolha é de cada um. Tome seus melhores vinhos. Não deixe sua vida ressecada como a bola preservada para uso “oportuno”. Certamente, arrepender-se ao final por não se ter vivido pode ser tão frustrante quanto a decepção da inocente meninada pela bola sem vida.