Os policiais levaram informação ao juiz de que encontraram um menino jogado no container de lixo perto da padaria. Gritava por socorro quando o retiraram e chamaram pela polícia. O menino revelou que por ali beirava quando foi lançado no recipiente por alguns rapazes que voltavam da farra pela madrugada. Mas, embora fossem todos conhecidos naquela cidade, o menino não os revelou. Certamente, temia vingança por eventual delação. O menino mereceu daí assistência social, era simpático e foi conquistando o afeto geral. Então considerado, estendeu amizade por toda parte. Era engraxate e conseguiu melhorar seu serviço, conquistando uma caixa própria para o ofício e material adequado. Tinha que manter a mãe enferma na singela Vila Vicentina. O menino cresceu e venceu na vida. Anos depois, reencontrou aquele o juiz. Em conversa, o juiz o perguntou quais lembranças do episódio do lixo. Serenamente respondeu: “Não guardei ódio ou rancor, sinceramente nem com trauma fiquei. Afinal, mesmo sem entender, eu me sentia de fato quase ninguém, quase nada, quase lixo mesmo. Penso que os rapazes não fizeram aquilo deliberadamente para me humilhar, fizeram apenas por farra. Mas o que lamento é que a causa que os moveu ao ato impensado e inconsequente foi a indiferença, um dos maiores males da humanidade. Efetivamente, a indiferença que temos pelos outros em reiteradas ocasiões. Hoje compreendo. Pouco se importavam comigo, com o que eu sentiria. Assim a maioria não se importa com as agressões ofensivas e seu efeito na vítima. Intensa a indiferença à existência do próximo tão semelhante. Consideração só quando brota interesse. Os rapazes foram simplesmente tão frios e apáticos como se acostumaram nessa sociedade que nega a comunhão. E eu, que no contexto me via mesmo próximo do nada, não podia sequer me sentir humilhado a ponto de ficar traumatizado. Hoje, que decifro, lamento pela humanidade e me policio para não me contaminar”. O juiz, peça dessa engrenagem, compreendeu e, cabisbaixo, ouviu calado.