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Caridade

Ricardo Cavalcante Motta
Publicado em 21/05/2024 às 18:03
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Ouviu da esposa que sua caridade era das migalhas que não lhe faziam falta alguma. Ofendeu-se, mas refletiu. Parou em oração. Afinal, a caridade é uma das feições do Amor e acreditava que Deus é Amor. Todavia, admitiu, já estava a usar dessa prática, distribuição de alimentos, para se escudar comodamente em face de suas demais atitudes de cunho subjetivo, bem relapsas em relação ao Amor. Dentre tantas, a de se sentir superior perante os carentes destinatários das doações, a quem via quase como miseráveis condenados e também quanto aos demais convivas porque, intimamente, guardava em face destes um certo menosprezo pelo fato de que materialmente não praticavam caridade. Refletiu que, mercê de seu gesto, de fato inquestionavelmente benéfico pelo efeito da ação, ao matar a fome alheia, estava acomodando de seguir a trilha da evolução espiritual, para a atividade purificadora da alma, e até mesmo justificando-se por eventuais desvios, sob o manto do “– mas eu faço caridade!”. Retumbou em si que, convenhamos, sentir-se superior aos famintos que se alimentavam de sua boa vontade ou perante os demais, a quem olhava como inferiores, apenas porque não agiam como entendia adequado, estagnava o seu ser na trava entre o corpo e a alma. Afinal, o que compartilhava em nada, absolutamente nada, atingia sua fortuna, restringindo-se exatamente às migalhas referidas pela esposa. Praticava caridade, mas caridade rasa, pouco transformadora, sem contaminação subjetiva pela verdadeira e necessária compaixão fraterna. Quase “moeda” de troca para alívio da consciência. Afinal, não havia de se repartir somente o pão material, mas também o pão do Amor, da cooperação humana. Compreendeu que a verdadeira caridade é dividir o próprio pão quando também tem fome, ceder parte de si. Não bastaria, então, partilhar a matéria para comungar suprindo o corpo, também teria que compartilhar do Amor que mata a fome da alma e, nessa esfera, talvez tivesse, ao contrário de sua prática, de ser o destinatário da caridade. Tocou-se humildemente por essa conclusão e rogou por socorro ao Senhor. 

 Ricardo Cavalcante Motta

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