É isso mesmo. Chifre! Aquela sensação que baixa no pobre do homem corneado. Aquele que é sempre o último a saber. A dor é forte, incomoda pra boi! (ia dizer pra burro, mas lembrei que esse pobre animal não tem cornos).
Acredito que nem mesmo o mais inspirado compositor goiano de moda sertaneja seria capaz de exprimir a dolorosa sensação que sinto. Fui corneado... Senti-me traído após uma relação que já durava aí pra mais de trinta anos!
Traído pelo Sr. Francisco Buarque de Holanda, ídolo de minha geração, herói do meu tempo. Desde que me entendo por gente trazia-o na condição de pessoa especial. Muito mais que admirado, Chico era para mim exemplo, referência e símbolo.
Molecote ainda, arregalei os olhos (e ouvidos) quando a banda passou tocando coisas de amor. Vi-o crescer musical e poeticamente, invadindo territórios de letras, ritmos e acordes cada vez mais complexos e conseguindo a proeza de superar a própria genialidade em cada melodia.
Meu coração juvenil, que era um pote até aqui de mágoa, vibrava com as estocadas que o poeta desferia naquilo que eu chamava de “intolerável ditadura militar”... sem sequer imaginar que viria a conhecer depois a ditadura congressual!
Lembro quando cheguei esbaforido em casa, com o novo LP do Paulinho da Viola nas mãos e mostrava agitado à minha irmã a nova música do “Julinho da Adelaide” (pseudônimo que Chico criou para driblar a censura). Chame o ladrão, chame o ladrão!
Acreditava piamente que um dia, em algum esperançoso dia, quando a rosa dos ventos se danasse, a multidão veria em pânico, ainda que atônita, seu despertar. Tinha certeza que apesar dos generais amanhã iria ser um novo dia, quando o galo insistisse em cantar! Ainda pago pra ver o jardim florescer qual você não queria...
Fui amadurecendo com o tempo e seguindo as canções. Ouvindo a voz, certamente chinfrim, mas cabeça de gênio, alma de poeta. Chegava às lágrimas ouvindo a revolta da mãe da curuminha, em Ópera do Malandro ou a definição tocante de saudade – que é arrumar o quarto do filho que já morreu.
Claro, havia outros. Minha geração teve a felicidade de conviver com muitos gênios, como o próprio Paulinho da Viola, o Tom Jobim, o Vinicius, o Caetano... tantos! Mas o Chico era diferente. O Chico se impunha como algo referencial. Ditava comportamento. Apontava caminhos. Ensejava seguidores.
E eu, amante embasbacado, vociferava que o rapaz era sobrinho do maior filologista brasileiro, filho de um sociólogo e intelectual de primeira grandeza. Era diferente, era nobre e sabia, como poucos, expressar as entranhas das mazelas sociais de nosso povo. Quando não se convertia em “Chica” e punha pra fora uma incrível alma de poetisa! Quero ficar no seu corpo, feito tatuagem...
Aí vieram os anos do PT... as notícias esparsas publicadas aqui e ali. Tentei desacreditar a princípio. Mas fui tomando consciência aos poucos que nossa pátria mãe, tão distraída, não só na Petrobras, mas também através da Lei Rouanet, vinha sendo subtraída. Tenebrosas transações...
Hoje, mais velho (nem por isso menos dolorido), vou aos poucos me acostumando com a ideia que não devemos misturar o homem com a obra. Que, pelas informações que nos chegam, aquele alemão baixinho chamado Wolfgang Amadeus Mozart devia ser um pé no saco. Mas a obra persiste através do tempo!
Talvez, superada a dor de chifre, eu me anime a aninhar alguns netos no colo e ir lhes passando, aos poucos, as centenas de recordações que tenho guardadas, sob forma de vinil e CD, de meu antigo caso de amor.
Restará então falar apenas da obra. Quanto ao ídolo, eu vou lhe deixar a medida do Bonfim. Não me valeu...