O tilintar das chaves penduradas em tua cintura...
Este foi o som que gravou a tua presença em minha memória.
Eu o tinha como um solucionador financeiro. Um alguém a quem minha mãe dizia-me para procurar e, ao encontrá-lo, pegar o dinheiro do pão, do arroz, da vida...
Foram muitos encontros, assim insossos... descabidos. Ouvia tua prosa de idoso, tão chata para a minha idade! Tuas calças de linho, teus sapatos “Passo Doble”, a camisa social e o impagável paletó com os bolsos cheios de papéis. Os óculos tornando as órbitas maior do que eram, sem que a armação conseguisse cobrir as grossas sobrancelhas...
Foste o chato de minhas primeiras lembranças...
Me fiz rapaz e cresci com essa impressão a teu respeito.
Até aquela tarde já distante, quando levei, às pressas, meu irmão ao pronto-socorro. Deixei o carro da mamãe estacionado na ladeira (na verdade “embiquei-o” contra a guia da calçada) e entrei esbaforido pelo hospital com aquele pequenino nos braços.
Pouco depois ouvi um estrondo e fui lá fora ver o que ocorrera. Lá embaixo, ao pé do morro, uma multidão se formava. O fusca descera sozinho ladeira abaixo, indo acertar uma Kombi azul em plena Arthur Machado! A Kombi tombou com o impacto, a lateral toda amassada, mal deixando entrever a logomarca ali pintada: JOMAR – Eletrodomésticos.
Felizmente ninguém se feriu... Poderia ter sido uma pessoa... ou várias!
Fui chegando à multidão ali formada, ouvindo os brados pontuais:
- Que irresponsabilidade!
- Quem será o proprietário?
- Podia ter matado gente!
Quanto mais me aproximava, mais pálido ficava... já estava me vendo ser conduzido para a delegacia... e sei lá quanto mais passava pela minha cabeça de rapazote.
Agoniado, estômago revirando, pensava em o que falar para os policiais que ali estavam, quando ouvi o tilintar das chaves...
Lembro do teu braço no meu ombro, lembro de você me estendendo a chave de tua casa que era ali perto:
– “Vai embora.... vai agora.... deixa que eu cuido disso aqui!”
Hoje, venho, com os olhos úmidos, dizer-te que em minha vida tive pouquíssimas mãos sobre meu ombro. Mas consegui chegar até aqui. E olho para trás sem me envergonhar do trajeto. Tentei honrar o teu caminho. O mesmo longo caminho que nós, os chatos, aprendemos a trilhar por autoesforço.
Já te fostes há muitos anos e não sei onde ou quando poderei agradecer-te, mas espero que estejas em paz. A paz dos que cumpriram a jornada.
Sua bênção, vovô!
Tharsis Bastos – 24/09/2025